1ª parte” | Há de se ter caminhos emergindo, por Raquel Almeida. Ep.1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readSep 14, 2023

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Ilustração: Kaio Ka

A gente se acostuma a ficar sozinha, sozinha, o eu comigo mesma, e sempre batem vontades de coisas que não sei o que é, choros presos sempre me atordoam, ficar se debatendo na cama de madrugada e acordar tarde sem muitas expectativas porque o que gosto de fazer é duvidoso, ou mesmo o medo de pisar em terreno desconhecido, sintonizar com isso e seguir, e como seguir se a sua estrada é uma encruzilhada, que cruza com a vida de outras pessoas, pessoas próximas até, mas que nunca pararam pra contar a você qual foi a pedra que chutaram errado nesse caminho, e a estrada é longa e duvidosa, cinza e tenebrosa… Mas não parei, ainda sigo.

Se é isso que me dói a cabeça, o coração, que enche os meus olhos d’água, quer dizer que a pura técnica não me atrai em nada. Estou aqui com os meus botões matutando que o que me deixaram foram só fragmentos, e eu aqui igual uma tonta, juntando esses cacos, entendo, entendo sim, o buraco deixado em mim, nunca é culpa de ninguém, e quem é que ia saber que isso me afetaria tanto? Às vezes acho que seria mais fácil se eu não fosse quem eu sou, ou se não pensasse da forma como penso, mas foi tão duro conquistar essa mínima liberdade que de jeito nenhum vou andar pra trás.

Tudo na vida passa? Acho que não, tem coisas que ficam dos nossos bisavós pra os nossos avós, dos nossos avós pra os nossos pais, dos nossos pais pra a gente, da gente pra os nossos filhos, e assim segue, porque é um ciclo, e tudo volta, de uma forma ou de outra, com mais ou com menos intensidade. Se é uma busca besta essa querência de saber quem fui, quem sou, quem eram os meus? É o que mexe comigo, não tem explicação, eu preciso cutucar a ferida com vara curta. Essa coisa de remexer com autoestima, com identidade, confunde ou esclarece?

Eu fui buscar e cavei muito pra achar alguns tesouros, agora que achei vou até o tal fim, se é que o fim existe, se somos um ciclo, vou até deixar o ciclo pra alguém, só cuidar pra não esburacar mais ainda essa estrada, eu quero recomeçar de agora, de já. Já é hora de rememorar e desenhar o meu caminho, essa é a meta.

Às vezes o colo de mãe faz falta, aquela que vai aconselhar e guiar, e dar uma certa paz, fazia isso com a vó e era tão bom, cheiro de erva-cidreira era o cheiro do colo dela, era o que me fortalecia, não fazia isso com a minha mãe, talvez seja por isso que sinto falta de ser cuidada, por isso que, na minha vida, busco sempre uma mãe pra sanar essa lacuna que a vida deixou. Porque, depois de um certo tempo, foi o meu colo que virou morada de outras precisões, e ser colo cansa.

Acordei atordoada, às 11 horas da manhã, procurando o cigarro, nem vi como dormi ontem, só lembro que estava num conflito danado, que ironia, acordei do mesmo jeito, acendi o cigarro, o cheiro da nicotina se mistura ao cheiro da poluição da rua, a rua, como sempre, agitada, gente passando pra lá e pra cá, será que estão sem rumo como eu? O cheiro de café reforça ainda mais as minhas angústias, passo manteiga no pão e o empurro pra dentro com um gole de café amargo.

Da janela observo o caminhão de cerveja parado na porta do bar, os catadores de papelão na labuta, as crianças sorridentes rumo à escola, e eu aqui, dependurada nessa janela, fumando cigarros e tomando café. O cômodo alugado cheira mal, é úmido, mal iluminado, está insalubre igual a minha vida, a parede úmida já me irrita faz um tempo, olho o cantinho da casa onde estão todas a tintas do meu antigo ateliê, os desenhos inacabados, os pincéis, as pastas, qualquer um poderia me chamar de doida, mas fiz, lavei a parede embolorada de vermelho cor de sangue, escorreu pra o chão, e dá-lhe tinta, com um pincel grosso na mão, contornei uns caminhos azuis sobre o vermelho, no desenho indefinido se formaram 4 caminhos cruzados.

Foto: Carol Freitas

Raquel Almeida é poeta, escritora, arte — educadora e produtora cultural. fundadora do Coletivo literário Elo da Corrente, grupo que atua no bairro de Pirituba, desde 2007, no movimento de literatura periférica/negra, realizando um sarau mensal e mantendo uma biblioteca comunitária no bar onde realiza o sarau. Iniciou seu trabalho artístico em 2005 cantando no grupo de rap Alerta ao Sistema e atuou na rádio comunitária urbanos FM 2006/2007. Ministra oficinas de literatura e criação poética em escolas, centros culturais entre outros espaços.

Episódio 1

Episódio 2: 21/9

Episódio 3: 28/9

Episódio 4: 5/10

Episódio 5: 12/10

Episódio 6: 19/10

Revisão: Michel Yakini e Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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