“A Missão” | Rodô, por Marcelino Freire. Ep. 3

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readSep 28, 2022
Ilustração: Uberê Guelé

Um santo não come pouco?
As beiradas de uma bolacha? Um macarrão enrodilhado em um marmitex abandonado?
Migalha de pão.
Não vivem no lixo os desafortunados? Digo: os infaustos e desventurados?
Aqueles que não dão importância a uma propaganda que pisca na TV deste lugar.
É tanta maionese bonita.
Agro é pop.
O que é pop?
Ignoro.
Sei lá.
Noto que uma velha, quase acocorada na pilastra, vai ser surrupiada. Igual eu fui, de minhas caixas conjugais.
Fiquei de olhadela.
Um anjo não é assim quando coloca as asas para proteger os oprimidos?
As asas para sobrevoar o coração do inimigo?
Comecei a entender como se comporta um profeta barbudo. Vi que minha barba foi se formando feito uma indumentária. E a minha cara foi ficando confiável.
Uma moça tão triste, um dia, quis ouvir de mim uma palavra. Eu disse duas palavras, três, umas cento e oitenta e oito palavras.
Mais os silêncios.
Ela correu para o ônibus cheia de uma esperança viva, um contentamento. E outros ônibus, tenho percebido, chegam carregados de outras moças tristes. Eu conforto. Chego junto e, no começo, ficam assustadas. Mas, depois, ficam sabendo que sou também Jesus. Uma vai avisando para a outra. Porque umas quatro moças já me procuraram essa semana.
Não cheiro mal.
Já sei onde posso usar a água de um terreno aqui perto. Uma fonte perdida do Tietê que ficou guardada para os batismos. Muito mais limpa e fresquinha do que as quartinhas do Nordeste. Não era assim, até eu chegar, a água que se tinha nesse esconderijo. Foi depois que eu toquei a água com a minha saudade que a água se cristalizou. A saudade opera milagres. Minha missão é fazer chover água nova dentro do rio morto.
O Tietê virará uma pororoca.
Ah, levam tempo as ambições que as ambições divinas depositaram em mim.
Serás único.
De fato, eu sinto.
Mas eu estava falando sobre os gatunos de olho na velha amolecida. Há muitos gatunos, gatunas na rodoviária. Pecadores larápios. Eu vejo de longe o movimento criminoso e intercedo. Exorcizo, com eficácia, aquela missão.
Se queres dádiva, eu te dou.
Ponho saúde em tuas mãos. E benzo teu corpo para que teu corpo só faça o bem. E plante o amor, irmão, irmã.
Minha imagem impressiona.
A polícia já me conhece e até faz o sinal-da-cruz. Os homens fardados sabem que eu também sou capaz de livrar cada um deles de uma tocaia, de uma bala vingativa. De uma carnificina pelas horas da noite.
Quando chega a noite e as estrelas nem aparecem de tão cinzas, por aqui, as luzes do mundo.
Consigo me recolher entre outros recolhidos para dormir, debaixo de uma marquise, sou igual a São Francisco.
São Olímpio.
Santa Elza.
Mãe Beatriz.
Tem até um que nasceu pertinho de Esperantina.
Uma legião de apóstolos e apóstolas, a postos para a batalha.
Acordamos com os primeiros passageiros do trem.
Quem vem lá quem vem?
Quem vem lá quem vem?
Quem vem lá quem vem?
Quem vem lá quem vem?
Hein? Hein? Hein?
Hein? Hein? Hein?
Hein?
Fiéis.
Já às cinco horas da matina, pelos ferros do trem, nossos pobres fiéis.

Marcelino Freire | Foto: Mario Miranda Filho

Marcelino Freire escreveu, entre outros, “Contos Negreiros” (Editora Record, 2005), com o qual foi vencedor do Prêmio Jabuti. Em 2013 lançou, pela Editora Record, o romance “Nossos Ossos” (Prêmio Machado de Assis). É o criador e curador da Balada Literária, evento que acontece desde 2006 em São Paulo.

Outros episódios:

Episódio 1: José Jesus do Piauí

Episódio 2: Tietê

Episódio 3: A Missão

Episódio 4: O Milagre| 5/10

Episódio 5: A Resposta| 12/10

Episódio 6: Esperantina | 19/10

Revisão: Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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