"Aparição" | Na casa de Iyalenu, por Miriam Alves. Ep.1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readMar 2, 2023

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Ilustração: Carolina Itzá

Parada à porta de entrada da casa, Iyalenu olhava ao longo da rua, tentava se lembrar quem era, qual o sentido das coisas que vivenciara. Mergulhava em emoções, ao recordar as trajetórias que fizera para realizar os seus sonhos. Enveredou por alguns caminhos que exigiriam dela dispêndio de grande energia pessoal. Ao trilhá-los, adiou prazeres que, depois, na tentativa de realizá-los, já não faziam mais o menor sentido. Mas com o tempo, aprendeu a dar ouvidos a avó Ambrosina que aconselhava a não desdenhar daquela vozinha interior que sempre a alertava. Voz que às vezes era só um sussurro, algo rápido, uma brisa, outras tantas vezes era um grito, um estrondo, um vendaval em redemoinho, destelhando e derrubando obstáculos. Organizava-se, mirava uma meta, um objetivo, mas mudava os planos ao sentir que não lograria êxito.

Imóvel entre o batente da porta, que a emoldurava, usava veste branca esvoaçante transparente que a luz natural provinda da janela oposta à porta realçava o brilho da sua pele como pétalas de rara rosa negra. Excetuando a respiração levemente acelerada, assemelhava-se a uma pintura elaborada por um caprichoso artista. O olhar se perdia no traçado em curvas da rua, que se alongava como uma grande serpente, entrecruzando-se na transversal com outra rua curvilínea, ponto de convergência de caminhos, breve pausa para cada ponta seguir seu traçado para além dali. Com o olhar atento no centro do cruzamento, ela entrevia o redemoinho de fina terra vermelha, levantada por vento imperceptível, que girava harmonioso, ora suave, ora intenso. As partículas em cinesia se aglutinavam, formando no ar contornos de uma criatura esguia, desproporcionalmente alta, como se a terra a tivesse regurgitado.

Intrigada, ela fixava a atenção ao bailado, realizado por aquela figura que, em movimentos elípticos espiralado, seguia melodia inaudível e a cada giro se agigantava. Deslocava-se lentamente do centro da encruzilhada, flutuando por sobre o caminho em direção à casa onde Iyalenu, incapaz de esboçar a mínima reação, mergulhava em lembranças. Sentiu vontade de gritar, a boca se abria, mas, por mais que tentasse, não emitia o som capaz de tirá-la daquela letargia involuntária. Enquanto se debatia com lampejos de memórias indesejáveis, a criatura — nuvem de poeira — aproximava-se cada vez mais ocasionando-lhe calafrios e arrepios. Sensação angustiante a dominou, ao atentar para o tremor sob seus pés provindo do solo. Acometeu-lhe um desejo incontrolável de chorar, como há tempos não fazia. Quem sabe as lágrimas, assim como as águas de cachoeira. a removeria daquele imobilismo involuntário. Esforçou-se, porém nem uma gota sequer rolou pela sua face.

Iyalenu foi acalmando-se gradativamente. A sensação de terror, que sentiu nos primeiros instantes do aparecimento da nuvem de poeira avermelhada no entrecruzamento dos caminhos, transmudou para um misto de curiosidade e calma. Não percebeu nenhum traço de hostilidade quando foi envolvida, lentamente, por uma espécie de abraço incorpóreo, que lhe infundia um calor afetuoso, há tempos não sentia. Aos poucos alcançava o interior da massa de partículas aglutinadas, que no centro emitia luz intensa. Antes de adentrar o núcleo da matéria, ouviu: “Eu sou Eruku Eda. Venha! Você terá as respostas que tanto procura”.

Miriam Alves nasceu em São Paulo, em 1952. Figura de destaque no panorama da literatura afro-brasileira, integrou o histórico coletivo Quilombhoje Literatura. É autora dos livros de poemas Momentos de busca (1983) e Estrelas no dedo (1985); dos romances Bará: na trilha do vento (2015) e Maréia (2019); e das coletâneas de contos Mulher mat(r)iz (2011) e Juntar pedaços (2021). Além de escritora, é assistente social e professora.

Episódio 2: Recordação | 9/3

Episódio 3: Elaboração| 16/3

Episódio 4: Inquietação | 23/3

Episódio 5: Recuperação | 30/3

Episódio 6: Ação | 6/4

Revisão: Liliam Ambar / Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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