Condomínio pague para entrar, reze para sair, por Ferréz, Ep. 4

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readMar 31, 2021
Ilustração: Fabio Quill

Carlos Alberto entrou na casa, agora faltava pintar os quartos, tinha deixado as janelas abertas, um cocô de gato estava esperando por ele no primeiro quarto.

Alguém tocou a campainha.

Miséria, nem cheguei, já enchem meu saco.

Já vai.

Opa!

Daniel, o que faz aqui?

Isso é jeito de falar com um amigo?

Desculpa, entra, acabei de chegar.

Tava sabendo de mim, não?

Sim, quando fui pegar essa casa, o pessoal da imobiliária me falou mesmo que…

Que eu tinha mudado pra esse condomínio também, né? Faz um mês que tô arrumando a bagunça, e você, meu amigo, como veio parar aqui?

Ah! Cara, senta aí, vou fazer um café.

Poxa, já está instalado?

Nada, trouxe um fogão daqueles de duas bocas, e um colchão pra esticar as costas, o resto vem quando terminar de pintar.

Sobrou mais alguma coisa?

Sem açúcar, né?

Sim.

Separou mesmo, ninguém acreditou?

Pois é, tudo tem um tempo.

Tudo isso começou na separação.

Devia ser terminar, né?

O quê?

Devia ser terminar e não começar na separação.

Verdade.

Esperamos que tudo termine na separação.

Você sempre foi bom de frases, a vida não é tão correta como as frases prontas.

Então pra você ver, decidi mudar e aquela casa gigante, nossa, as crianças, sabe? Elas no quintal, toda aquela lembrança, os finais de semana.

E tudo isso vira contra a gente mesmo, né?

Sim, ferveu a água, vou pegar o copo, você só gosta de copo, né?

Sim, odeio xícara, você lembrou.

E você, Daniel, o que te trouxe pra esse fim do mundo?

Ah, vou te falar, primeiro eu precisava de um lugar seguro, depois mudar os ares e no final me aposentei.

Caramba, tudo junto.

Você nem imagina, Carlos, na primeira semana, sentei na frente de casa, o vizinho passou e falou.

Vida boa, hein ?

Vida boa? Vi que era hora de mudar, não teria paz ali, então percebi que era hora de mudar. Meu, pode falar o que for, mas em bairro assim, onde nascemos, ninguém respeita mesmo não.

A felicidade parece que não combina com conforto.

Opa, muito bom o café.

Quer algo pra comer? Tenho bolacha.

Não, tô enjoado de bolacha, homem separado sofre, né?

Bom! Eu não sei ainda, fico meio perdido, mas tô curtindo também ficar sozinho, tô pintando a casa, cuidando das coisas, comprei um peixe.

Um peixe?

Sim, ele tá na cozinha, vem ver.

Um peixe, caralho… Esse Carlos é foda, ah! Um peixe pequeno, qual o nome dele?

Armando.

Armando?

Sim, acho legal esse nome, tem uma coisa de profissão.

Ha, ha, foda.

E seu pai?

Ele tá bem, já com 78, aí fica teimoso como nunca.

Nem me fale, a minha mãe também tá assim, teimosa em morar sozinha, quer fazer tudo sozinha e vive caindo.

Eles são outra geração, né, meu pai, veja só, fui pagar um short pra ele poder caminhar, ele falou no mercado.

– Aí, é muita mamata.

E não aceitou.

Se nossas mulheres fossem assim, hein?

A Regina até é tranquila, esse negócio dela estudar de novo e tal ocupou ela bastante, mas você, cara, você tá fudido?

A profissão da minha mulher sou eu. (rsrsrs)

Nossa, quando é assim…

A profissão dela vai ser o ódio, agora que vai ficar complicado pro meu lado, o ódio é algo em que as pessoas se aplicam bem mais.

E você pensa assim e ter alguém novamente?

Acho meio rápido, sabe? Mas esses dias, do nada vi uma mulher aqui que me balançou demais.

Opa, olha algo de bom aí, nossa, o café está incrível.

Ferréz (arquivo pessoal)

A série “Condomínio pague para entrar, reze para sair” foi escrita por Ferréz, romancista, contista e poeta brasileiro. O autor desenvolve a chamada “literatura marginal”, produzida na periferia das grandes cidades e que trata de temas relacionados a esse universo. Ferréz já publicou diversos livros, entre eles Fortaleza da Desilusão (1997), Capão Pecado (2001), Amanhecer Esmeralda (2005), Ninguém é Inocente em São Paulo (2006), Deus foi Almoçar (2012) e Os Ricos Também Morrem (2015). É fundador da ONG Interferência e da marca de roupas 1DASUL que atuam na periferia da Zona Sul de São Paulo, e do Selo Povo, editora independente, e é sócio de uma editora de quadrinhos.

1º episódio: Episódio 1

2º episódio: Episódio 2

3º episódio: Episódio 3

5º episódio: Episódio 5

6 episódio: Episódio 6

Revisão: Paulo Kaiser

--

--

FOLHETIM | Sesc Pompeia

Experimento literário do Sesc Pompeia convida escritores a criarem narrativas inéditas