Condomínio pague para entrar, reze para sair, por Ferréz, Ep. 1
Finalmente escolheu uma casa, sabe aquela sensação de que aquela casa foi feita pra você?
Você bate os olhos e se sente já morando?
Foi assim, quando entrou no velho casarão dos fundos do condomínio, não era bem-vista por ninguém, ficava perto do lago, em frente ao muro que dividia o condomínio dos terrenos comuns.
Térreo, três cômodos, um banheiro, um dos cômodos do fundo pra terminar, uma vida pra viver.
Um relacionamento terminado.
Um sentimento, que se foda o cômodo.
Não teria filhos, não teria cachorros.
Terreno espaçoso, o rapaz mostra tudo, a boca não para de mexer, fala até pelas orelhas.
Carlos Alberto está de saco cheio, deitaria ali agora. Fecha a boca, eu quero essa casa, você me dá uma volta?
A minha é bem maior.
Mas o local não é valorizado, não é condomínio.
Mas tem piscina.
Mas não tem segurança.
Mas tem sete cômodos.
Mas não tem segurança.
Mas o terreno lá é bem maior.
Mas não tem esposa, nem churrasco na grelha, nem cunhado com suas piadas, nem meninos mijando, nem uma vizinha com som alto, nem meninos nas motos e seus escapamentos abertos, nem carros de vender laranja, ovos, propaganda de roupas, de 19,99 por 9,99, de 29,99 por 19,99.
O senhor concorda que essa casa aqui é bem menor?
Mas tem segurança, área protegida, lugar totalmente filmado 24 horas, rondas motorizados, carros patrulhando todo o espaço.
Sabe! É que investi tanto naquela casa, tudo usado nela é de melhor qualidade, e não estou desmerecendo, mas olha esse acabamento, feito direto no tijolo, é gesso feito direto no tijolo.
Mas tem segurança.
Começou a pintar a casa por dentro na mesma semana, precisava de algo manual para não enlouquecer.
A mudança estava muito difícil de se concretizar, os móveis não eram compatíveis com a casa, toda moderna, não combinava com os móveis rústicos nem com os antigos herdados da avó.
Os vizinhos lhe deram um oi de longe, um menino saiu correndo pelo terreno, deu toda a volta, imitando o som de um carro potente.
O segurança passou com a moto lentamente, olhava casa por casa até chegar no ponto onde devia tocar com o bastão, levantou o capacete calmamente, olhou para os lados e tirou o maço do bolso, naquele exato ponto, entre a árvore e o poste da rua ele acendeu o cigarro, puxou a fumaça repetidas vezes até o meio estar queimado, tragou e soltou pra cima, jogou o restante no bueiro. A moto continuava ligada.
Carlos Alberto estava sentado em frente da sua nova casa, a noite quieta, somente interrompida pelo latido do cachorro da rua de cima.
Como era diferente aquele silêncio, como podiam comprar o silêncio?
Se sua avó sempre gritava que a paz só depois que morremos.
Paz pra quem tem.
Carlos Alberto caminhava pelo condomínio todo dia, as madames passavam por ele, um bom dia de leve, ele devolvia com vontade de falar mais.
A tarde lhe procuraram, duas pessoas, um casal. Podemos lhe por no grupo de desapego do condomínio?
Claro, lá falam de doar as coisas?
Vendemos, vendemos o que não usamos mais.
Carlos Alberto ia aprender ali entre os muros altos, que tem gente tão pobre, que só tem dinheiro.
A série “Condomínio pague para entrar, reze para sair” foi escrita por Ferréz, romancista, contista e poeta brasileiro. O autor desenvolve a chamada “literatura marginal”, produzida na periferia das grandes cidades e que trata de temas relacionados a esse universo. Ferréz já publicou diversos livros, entre eles Fortaleza da Desilusão (1997), Capão Pecado (2001), Amanhecer Esmeralda (2005), Ninguém é Inocente em São Paulo (2006), Deus foi Almoçar (2012) e Os Ricos Também Morrem (2015). É fundador da ONG Interferência e da marca de roupas 1DASUL que atuam na periferia da Zona Sul de São Paulo, e do Selo Povo, editora independente, e é sócio de uma editora de quadrinhos
2º episódio: Episódio 2
3º episódio: Episódio 3
4º episódio: Episódio 4
5º episódio: Episódio 5
6 episódio: Episódio 6
Revisão: Paulo Kaiser
