Condomínio pague para entrar, reze para sair, por Ferréz, Ep. 2

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readMar 17, 2021
Ilustração: Fabio Quill

Nos primeiros dias de mudança, tiveram que interromper. O corretor não tinha falado desse problema, esse cano não tinha sentido, cadê os registros para desligar a água? Os móveis na sala, o vizinho com a cara desfigurada, a mulher puta da vida, ligando para a imobiliária.

Isso não fazia parte do nosso acordo.

Senhora, dá uma lida no contrato, esses detalhes sempre tem.

Mas a casa é nova, moço.

Mas olha o contrato.

Mas não tem ralo nos banheiros.

Construção moderna.

Mas até na porra da casa da minha avó tinha ralo.

Olha a planta, senhora.

Essa casa não tem sentido.

Mas tem segurança.

Tanta gente para comandar, a cozinha estava toda branca do gesso sendo colocado, a sala estava sendo pintada, instalando boxes nos banheiros, o rapaz da piscina vivia pedindo mais material para terminar de pôr os azulejos.

Em frente, um homem sempre chegava de manhã e começava a pintar a casa, mal tinham se visto, um bom-dia foi falado numa tarde. Sem família aparentemente, sem cachorro, sem amigos, sem falar no celular. O homem chegava, pintava, limpava tudo e ia embora, sua esposa tinha comentado de levar um café um dia, ele achou boa ideia, não sabia se era pedreiro, pintor de fato ou o futuro morador mesmo.

Carlos Alberto acordou tarde, o sol já passava parcialmente por baixo da porta, lavou o rosto na pia, colocou uma calça, calçou o sapato, se encarou no espelho um minuto e pegou suas chaves. Dirigiu até o condomínio.

Desculpa, senhor, vai ver alguém?

Sou morador, comprei esses dias a casa.

Qual rua?

Long Beach.

Lounges biachi.

Tipo isso.

Só um minuto.

O senhor pegou o crachá?

Não.

A imobiliária te deu o cartão de entrada?

Não.

E o sensor do carro?

Também não.

Ai fica difícil, né?

Deve ser.

Deve ser o que, senhor.

Deve ser difícil ficar nessa casinha o dia inteiro, né, meu nome é Carlos Alberto.

Prazer, senhor.

Não vai pegar na minha mão?

Desculpe, senhor, não posso passar o limite do portão.

Tudo bem.

Só um minuto que estou ligando na imobiliária.

Imobiliária de bosta do caralho.

O que, senhor?

Nada, eu espero aqui.

Anna odiava quando ele pisava no tapete da sala com o sapato que vinha da rua.

Por onde pisava marcava o tapete, ficava imediatamente escuro, depois ia subindo aos poucos e logo se apagava mas nesse tempo ela não parava de olhar para o tapete.

Compre o amarelo.

Queria o marrom-escuro, na falta do preto, algo escuro a deixava mais confortável.

O filho gritava.

Compre o amarelo, compre o amarelo.

Olhou para o rosto do marido, seus olhos estavam em outro lugar, mas seu rosto balançava para o garoto, Anna não gostava de contrariar. Anna não gostava dos passos do marido no tapete, ela esperava pacientemente eles sumirem, esperava ele ir embora, para passar um pouco de papel higiênico onde agora estavam as gotas de xixi, passar o papel higiênico em volta da pia, onde as gotas de água pingavam após lavar o rosto, o rosto oleoso do marido, as passadas, os pingos.

Anna não imaginava passar o pano sem ter que lavar, não gostava de lavar panos que fediam a mijo, a máquina de lavar era usada para roupas coloridas, o tanquinho não poderia, não poderia por um pano com mijo no tanquinho, plástico fica com o cheiro, o papel higiênico, sempre dois rolos a mais por mês nas compras da casa. Anna fazia as compras da casa sozinha.

Carlos Alberto passou com o rolo para pintura, e olhou nos olhos de Anna.

Ferréz (arquivo pessoal)

A série “Condomínio pague para entrar, reze para sair” foi escrita por Ferréz, romancista, contista e poeta brasileiro. O autor desenvolve a chamada “literatura marginal”, produzida na periferia das grandes cidades e que trata de temas relacionados a esse universo. Ferréz já publicou diversos livros, entre eles Fortaleza da Desilusão (1997), Capão Pecado (2001), Amanhecer Esmeralda (2005), Ninguém é Inocente em São Paulo (2006), Deus foi Almoçar (2012) e Os Ricos Também Morrem (2015). É fundador da ONG Interferência e da marca de roupas 1DASUL que atuam na periferia da Zona Sul de São Paulo, e do Selo Povo, editora independente, e é sócio de uma editora de quadrinhos.

1º episódio: Episódio 1

3º episódio: Episódio 3

4º episódio: Episódio 4

5º episódio: Episódio 5

6 episódio: Episódio 6

Revisão: Paulo Kaiser

--

--

FOLHETIM | Sesc Pompeia

Experimento literário do Sesc Pompeia convida escritores a criarem narrativas inéditas