Condomínio pague para entrar, reze para sair, por Ferréz, Ep. 5

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readApr 7, 2021
Ilustração: Fabio Quill

Boa tarde, João, hoje seu turno é até que hora?

Boa, seu Carlos Alberto, hoje é até as 20, ontem o senhor chegou tarde.

Fui levar meu pai no médico, nem te conto, rapaz, chegamos mais de 1 da tarde no médico, perguntei se ele queria um café, uma água. Ele disse não. Então foram medir a pressão, tava tipo 5 por 8, aí a enfermeira perguntou o que ele tinha comido. Ele não tinha comido nada, você acredita? Desde que acordou, nem café puro tinha tomado e queria fazer o exame, que é correr na esteira.

Cara, eles são assim mesmo, esses dias passei na minha mãe, ela ia no médico, falei que ia levar, ela se recusou, disse que tava tudo certo já, no outro dia, minha cunhada veio falando. Porra passou na mãe e nem deu uma carona.

Quando fui argumentar que ofereci, ela relatou o depoimento da minha mãe, que chorou pra ela o dia inteiro, dizendo que sou muito ocupado e por isso eu não levei.

Fico às vezes pensando, sabe? Se não deixamos também eles na mão, porra! Eu tinha que ter perguntado se ele comeu. Se fosse um amigo, íamos parar numa lanchonete, íamos conversar sobre tudo. Fico pensando se não achamos que fazemos demais, quando na verdade não fazemos.

Senhor Carlos, não se cobra assim, não, de onde viemos, do sofrimento que passamos, até que estamos indo bem, meu amigo.

Mas já tentei trazer ele até pra morar aqui, no condomínio, ele disse que quem é preso é gado.

Homem sábio, porque ainda pagam por mês pra alguém controlar a porteira.

Se não fosse assim, você estaria em outro trampo, né?

Com certeza. (rsrsrs)

Verdade.

Esses dias fui fazer um exame a pedido do meu neuro, ressonância e, cara, a máquina era tão pequena…

Opa, peraí, meu celular tá tocando…

Vou ter que ir, Carlos, pra outra portaria, tem uns moleques lá.

Vai ver estão tentando fugir do condomínio.

Boa, rsrs, se fosse os pais era pra não pagar o boleto.

Os novos moradores eram, sim, uma preocupação, o grupo de whattsapp do condomínio já tinha tocado nesse assunto, e agora parecia que realmente estava acontecendo.

A crise do país a cada ano ficando mais forte, uma classe emergente que insistia em entrar num custoso padrão de vida que de repente não poderia manter. Comerciantes que tiveram êxito nos seus comércios e logo escalavam o sonho de morar melhor, de ver o filho participando de uma vida com mais algum futuro, pelo menos aparentemente.

Preocupados estavam de verdade, o rapaz era moreno, não era um moreno de praia, sabe? Era um moreno assim, de raça mesmo, dessa coisa de cor, num é que eles eram desses que julgam, sabe? Eles só estavam assim, clareando as ideias um pouco sobre isso. Porque o moço tinha além dessa cor um rosto bem sofrido, e ele mesmo estava pintando a casa, eles sabiam dessa coisa de you make, de faça você mesmo, dessa moda que começou talvez com a cerveja artesanal, e agora tudo que se pode fazer, vamos fazer, pra se sentir mais útil e tal. Mas um dono de imóvel desse, um homem que já tem assim, né, uma coisa de cor, de novo. Pra deixar bem claro, não é nada de querer denegrir ninguém, nem negro ele é, eu tenho inclusive um irmão do meu motorista que adotou um negrinho, e ele é boa pessoa, como diz o pai, tem coração de branco esse menino. Até mandamos uma bolsa de escola pra ele. Mas voltando pro homem, conversamos bastante na sala, e íamos fazer um bolo, depois achamos melhor cada qual no seu quadrado, que alguém uma hora ia contar pra gente de onde vinha, de que aquele homem vivia, de que lado do mundo ele tinha vindo, aí sim!

Assim saberíamos se dá pra se conviver com esse tal de Carlos Alberto.

Ferréz (arquivo pessoal)

A série “Condomínio pague para entrar, reze para sair” foi escrita por Ferréz, romancista, contista e poeta brasileiro. O autor desenvolve a chamada “literatura marginal”, produzida na periferia das grandes cidades e que trata de temas relacionados a esse universo. Ferréz já publicou diversos livros, entre eles Fortaleza da Desilusão (1997), Capão Pecado (2001), Amanhecer Esmeralda (2005), Ninguém é Inocente em São Paulo (2006), Deus foi Almoçar (2012) e Os Ricos Também Morrem (2015). É fundador da ONG Interferência e da marca de roupas 1DASUL que atuam na periferia da Zona Sul de São Paulo, e do Selo Povo, editora independente, e é sócio de uma editora de quadrinhos.

1º episódio: Episódio 1

2º episódio: Episódio 2

3º episódio: Episódio 3

4º episódio: Episódio 4

6 episódio: Episódio 6

Revisão: Paulo Kaiser

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