Condomínio pague para entrar, reze para sair, por Ferréz, Ep. 6

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readApr 14, 2021
Ilustração: Fabio Quill

Logo tudo começou a entrar em ordem, parece que uma paz reinou naquela casa, o filho sempre num canto, com um aparelho nas mãos, a mãe sempre organizando suas coisas, o pai sempre parado, olhando para a televisão, com o controle na mão, esperando um outro amanhecer.

Foi arrumar seus livros.

A mãe estava no sofá, evitava a mulher, elas nunca se deram muito bem, mas mãe é mãe, não é parente.

A mãe dele, que não conseguia olhar muito tempo pra ela nem conversar muito sem dar uma alfinetada.

Meu filho poderia ter um tanto assim de felicidade, um tanto assim de mãos abertas, sabe aqueles abraços que começam bem largos e depois vão se encolhendo?, assim era a felicidade que a mãe imaginava.

Carlos Alberto estava no canto, no canto da sala, no canto da vida.

Então a série dele favorita parou, ia ter uma nova temporada, até aprovarem, mas até o produtor executivo acertar o cachê do ator, que maldosamente tanto brilhava nela, até o escritor que inspirou os filmes, que agora tinha o livro transformado em série, e até seu agente, até todo mundo estar ganhando mais.

Ele não poderia ter mais ninguém matando, comendo, servindo um banquete de gente ruim, pro cara que gostava de cozinhar, esse monte de filho da puta que ele decidia matar.

Então ele começou a pensar em treinar, foi em três academias, mas tudo aquilo o irritava, as mulheres com cara de homens, os homens com cara de algo que não era homens. Os atendentes, os pesos, o esforço, o cuidado com cada movimento, aquilo de certa forma para ele não parecia certo.

Carlos Alberto havia pintado a casa inteira, Anna passava lá pela manhã, um acenava para o outro.

Então decidiu caminhar, não tinha que se cadastrar, fazer exame médico, ser medido, ser pesado, ser comparado.

E talvez no trecho escolhido, Anna passava, um papo assim se formava, um olhar, um gesto mais íntimo em meio ao céu azul.

Então é isso, esse é o destino, o fim?

Carlos Alberto sabia que, dando toda a volta pela parte baixa do condomínio, daria quase 3 quilômetros, baixou um aplicativo e colocou a meta.

Cruzou com Anna duas vezes, marcou o horário, mas ela não cumpria uma rotina.

Aqui priorizamos a segurança, esse espaço é para a sua vida toda.

Os ricos compram o silêncio.

Passavam em frente à casa 1088 todos esses dias, como começavam a caminhar de tarde, na altura desse número já estava escuro, a vela acesa no muro, uma curiosidade aquela vela, sabe? Seria para o menino Jesus? Seria para Magog?

Anna nunca olhou pela janela, talvez o marido estivesse lá também, talvez os dois sentados no sofá, perdendo os dentes, esperando a morte chegar.

Carlos Alberto cumprimentava os seguranças, os rondas, os faxineiros, os assopradores de folhas no parque.

Recebeu uma intimação ao fórum, sua ex estava querendo algo, notas, pensamentos, um advogado bom, ela sempre queria mais.

Carlos Alberto queria Anna.

Vestiu seu terno pela manhã, tomou um café ralo e foi à portaria, ao passar pelo portão Anna estava vindo, carregando pães, ela sorriu e passou por ele.

Carlos Alberto ia para o ponto quando ouviu alguém chamando.

Virou a cabeça.

Oi! Você é o rapaz novo ali, vizinho, né?

Sim, respondeu ele a Anna.

Passa em casa depois, eu tô fazendo um café, não sei se você vai sair.

Sim! Eu ia, mas, olha, não vou recusar um café de manhã, né, o meu eu estraguei.

Ambos riram, foram caminhando juntos.

Que sua ex espere, que o advogado espere, o tempo de ser feliz para ele é o agora.

Ferréz (arquivo pessoal)

A série “Condomínio pague para entrar, reze para sair” foi escrita por Ferréz, romancista, contista e poeta brasileiro. O autor desenvolve a chamada “literatura marginal”, produzida na periferia das grandes cidades e que trata de temas relacionados a esse universo. Ferréz já publicou diversos livros, entre eles Fortaleza da Desilusão (1997), Capão Pecado (2001), Amanhecer Esmeralda (2005), Ninguém é Inocente em São Paulo (2006), Deus foi Almoçar (2012) e Os Ricos Também Morrem (2015). É fundador da ONG Interferência e da marca de roupas 1DASUL que atuam na periferia da Zona Sul de São Paulo, e do Selo Povo, editora independente, e é sócio de uma editora de quadrinhos.

1º episódio: Episódio 1

2º episódio: Episódio 2

3º episódio: Episódio 3

4º episódio: Episódio 4

5º episódio: Episódio 5

Revisão: Paulo Kaiser

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