Ingrato, por Fábio Mandigo. Ep.1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readJun 8, 2023

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Ilustração por Pedro Sobrinho

— Preciso te levar até o ponto de ônibus antes do horário do treino — disse ao acordar, olhando sempre as faixas de luz que já desciam entre as telhas velhas.

— Eu consigo ir sozinha — ela respondeu, buscando um cigarro meio fumado em algum lugar do quarto.

— Eu sei que você consegue ir sozinha, não é isso, é só por segurança mesmo.

Lá embaixo, enquanto ele urinava, a janela arruinada do banheiro deixava ver toda a praça e a torre da Igreja da Saúde.

Na subida da ladeira do Pelourinho, encontraram Artista Baiano sentado na calçada da loja de colchões. Desde que voltou de seu exílio em Aracaju e não conseguiu reaver seu ateliê, Artista Baiano estava sempre ali com o Sindicato da Cachaça bebendo desde as seis e afastando moscas das feridas nas pernas.

— Tá comendo bem hein — disse Artista Baiano, olhando diretamente para a bunda da moça ao seu lado. Ganhou até um pesinho, antigamente você era só carcaça.

— É sim, você está certo. — Respondeu sem querer dar atenção.

— Arranje aí um real pra seu amigo!

Buscou a moeda do cafezinho no bolso e deu pra Artista Baiano. Percebeu que ainda estava no pé da ladeira e que ainda tinha duas horas de treino naquela manhã. Sentiu cansaço e seguiu calado até se despedir da moça já dentro do ônibus.

Essa moça apareceu numa tarde batendo na porta, procurando a vizinha de baixo, que colocou uma placa alugando a casa pro carnaval. Parou a pintura da parede da sala e veio atender ainda com o trinchão na mão e todo respingado de tinta verde-claro.

“Boca de pato”, pensou sem querer, dominado pela mania horrorosa de colocar apelidos mentais em todo mundo.

— Olha, ela não está. Me dê só um minuto que eu anoto pra você o número dela.

— Nossa, você tem muitos vinis ainda! — Ela falou já passando um por um os discos na caixa. –Adoro Billie — comentou sobre a canção que tocava.

— Pronto, esse é o número dela pra você ligar.

— Ah, obrigado, vou ligar sim, gostei dessa rua — ela disse e começou a descer as escadas.

Depois de alguns degraus se virou olhando pra cima e disse:

— Você intoxicou minha alma com seus olhos.

— Não entendi.

— Ah, é uma frase dessa música que você está ouvindo e que eu gosto muito. Você intoxicou minha alma com os seus olhos.

— Olha, vamos fazer assim, você me deixa o seu número e assim que a vizinha chegar eu te ligo?

Já iam duas semanas subindo e descendo, os dois. Chegando e indo embora.

Voltou na casa a tempo de conseguir tomar um banho frio no seu banheiro sem janelas no qual o vento levava pra longe a água do chuveiro e molhava todo o chão. Vestiu sua roupa branca, calçou o Rainha Vôlei surrado e começou a varrer o salão antes de passar o pano molhado com água de flor. Armou ainda os três berimbaus esticando cada um com muito cuidado pra não partir os arames, depois os pendurou na parede. Estava justamente apertando as tarraxas do atabaque quando o pessoal começou a chegar dando bom dia e trazendo café.

Podia mesmo seguir satisfeito com aquilo. Se não estivesse decidido a matar um homem.

Foto: divulgação

Fábio Nascimento (Mandingo) é historiador e mestre em Educação. Pai de família e homem comum. Nascido em Santo AMaro e criado em Salvador. É autor dos livros Salvador Negro Rancor; Morte e Vida Virgulina, Muito Como um Rei e A Princesa Mahin, todos pela Editora CicloContínuo.

Episódio 1

Episódio 2: 15/6

Episódio 3: 22/6

Episódio 4: 29/6

Episódio 5: 6/7

Episódio 6: 13/7

Revisão: Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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