“Morta, mas não muito” | Incêndio, por Clara Averbuck, Ep. 6

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readMay 26, 2021
Ilustração: Eva Uviedo

Eu só pensava em fugir. Não era exatamente um plano. Era um desejo intenso que me fazia queimar e só acalmava quando eu era dopada. Na sala de espera do eletrochoque, que era o que merecia uma mulher rebelde, uma mulher desobediente, uma mulher livre, que bebia, dançava, que simplesmente queria existir com a liberdade de que os homens brancos sempre desfrutaram, ouvi os gritos, senti a fumaça e veio o pânico. A enfermeira, sei lá se sobreviveu, e também não me interessa, saiu apressada para ver o que estava acontecendo e se esqueceu de trancar a porta atrás de si. Nem pensei e apenas fui. Fui, fui, fui, corri, dando olhadas para trás, mas o pânico já se espalhava mais que a fumaça e ninguém se importou comigo. Não sei e não quis saber se outras fugiam, se poderia eventualmente salvar alguma outra vida, eu só corri, não sem antes pegar uma roupa normal de alguma das enfermeiras para tirar aquele camisolão que chamaria atenção demais.

Ninguém se importou quando viu aquela moça sair de saia lápis xadrez discreto, uma camisa branca e sapatos baixos. Os bombeiros estavam ocupados demais com o fogo, as mulheres medicadas entorpecidas demais para reagir, as mulheres em surto gritando sem perceber nada além da morte chegando.

Andei e andei. Não era perto de nada. Andei mais. Já tinha sido medicada naquele dia pela manhã e por minha e exclusivamente minha sorte, o incêndio explodiu antes do eletrochoque, ou eu teria ficado e morrido também. Nada culpada por ter desejado a fuga e ter conseguido da pior forma, arrumei uma carona e dei um jeito de chegar na casa dos meus pais. Minha experiência de entrar e sair daquela casa sem ser percebida facilitou entrar e roubar tudo que encontrei: joias, prataria, uma arma, além de algumas roupas para me vestir decentemente, como queriam os bons costumes, que só são bons para os homens ricos.

Vendi tudo com facilidade e ainda saí do contraventor com um passaporte falso perfeito. Dormi uma noite em um hotel, me esforçando para não ser reconhecida naquela cidade de merda, e segui para o aeroporto. Tinha dinheiro suficiente para viajar para onde quisesse. Escolhi o Rio de Janeiro. Eu, agora Lily Armstrong, uma ruiva, embarquei sem ser notada e li sobre minha morte nas colunas sociais que arrumava um jeito de traduzir com a ajuda de um dicionário e do simpático bellboy que trabalhava no hotel em que vivia, no Lido, em Copacabana.

Eu estava livre de Scott. Ele estava perdido sem mim.

Coloquei alguns anúncios para dar aulas particulares de inglês, ainda tinha guardado bastante dinheiro das vendas dos bens de minha família (um crime jamais solucionado, felizmente não atribuído a nenhuma das mulheres que na casa de minha família trabalhavam) e usufruía de minha liberdade com minhas pernas brancas na praia, lendo livros e escrevendo, sempre escrevendo, agora criando um passado e uma vida para Lily.

Não tive mais filhos. Acho que os meus ficaram bem melhor sem mim. Abri uma pequena boate em Copacabana, onde mulheres podiam dançar alegremente sem a importunação masculina, algo muito infelizmente presente no Brasil. Se eu achava que os lugares nos quais vivi eram machistas era porque jamais tinha vindo à América Latina. Ele tinha seu charme, o homem latino, mas, por vezes, sua ousadia passava de todos os limites. Os seguranças davam jeito. Criei também um clube de leitura feminista, onde estudávamos Simone de Beauvoir.

Teve tanto mais. Está tudo aí, nesses catataus de papéis. Entrego a você, minha amiga, e agora preciso descansar. Viver duas vidas e carregar ódio e segredos me cansou demais.

Espero que a verdade venha à tona. Cabe a você.

*Esta história é livremente baseada na vida da escritora Zelda Fitzgerald, que foi casada com o também escritor F. Scott Fitzgerald. Cabe a você, também, descobrir o que é verdade e o que é ficção. Zelda agradeceria.

Clara Averbuck (acervo pessoal)

Encarceramento é o quinto episódio da série “Incêndio”, da escritora Clara Averbuck. A escritora tem nove livros publicados. Já teve a obra adaptada para cinema e teatro e foi publicada em Portugal, Inglaterra e países da América Latina. Escreveu para inúmeros sites, revistas e jornais Brasil afora. Escreveu uma peça de teatro, é pole dancer e dá aulas de escrita desde 2015.

Outros episódios:

1º episódio: Vida nova

2º episódio: Menina não pode

3º episódio: A memória de uma mulher

4º episódio: Copo transbordando

5º episódio: Encarceramento

Revisão: Regina Stocklen

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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