“O Piano” | Um piano para Ya Dulcina, por Conceição Evaristo, Ep. 6

FOLHETIM | Sesc Pompeia
5 min readOct 14, 2020

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Ilustração: Iléa Ferraz

Quando Vitorino Jose Fortunato, o velho pedreiro, chorou em desespero, ao perceber que um dos seus braços terminava em um punho mutilado e que na ponta do outro, sobrava o restante de uma massacrada mão, médicos e enfermeiros tão acostumados à morte, quase choraram também. Um convulsivo pranto tomou conta do homem, enquanto ele repetia, ora alteando a voz, ora abaixando , a frase: “um piano para Ya Dulcina”. E entre lágrimas foi desabafando a dor e revelando a sua impotência. Perdera as mãos e também o piano para Ya Dulcina. Não poderia mais exercer a profissão. Estava aposentado, entretanto necessitava continuar trabalhando, precisava de um dinheiro extra. Queria comprar um agrado, um agrado de valor para Ya Dulcina. Há anos, vinha acalentando o sonho, sem nada dizer para ninguém.

O velho pedreiro desde o dia em que ouvira a mulher dizer para o filho menor, o caçula, que ela sabia tocar piano, ficara intrigado com a história. Ya Dulcina sabia tocar piano? Como? Pensou que ela estivesse brincando com a criança, que naquela época tinha uns quatro ou cinco anos talvez. E a conversa da mãe com o filho pequeno cairia no esquecimento dele, tão grande lhe parecia o disparate, se não fosse o entusiasmo dela, todas as vezes que assistindo à televisão, ela via a apresentação de algum pianista, principalmente se fosse mulher. Um brilho maior aparecia no olhar de Ya Dulcina. Ela levantava as mãos e executava no ar os movimentos de quem tocava um piano. E era tal a entrega dela, que se as panelas estivessem no fogão, torneiras abertas na pia ou no tanque, a casa corria o risco de incêndio ou de alagamento, dependendo do tempo de apresentação do ou da pianista. Mas falar do saber tocar piano, nunca mais ela repetira, até que, de repente, em uma tarde, quando os dois estavam sós, ela olhando no vazio do tempo, como se quisesse recuperar alguma imagem, disse pausadamente:

— Eu sei tocar piano!

E não permitindo pergunta alguma, Ya Dulcina contou para o marido, como se deu a aprendizagem dela para tocar o instrumento. Aconteceu perigosamente e às escondidas, quando havia algum piano nas casas por onde trabalhara. Ela esperava a patroa sair, e se não tivesse mais ninguém em casa, adiantava o serviço, e muitas vezes de pé, pronta para correr, ia instituindo os caminhos da aprendizagem. Trabalhara em três casas que tinham piano. Na última moradia permaneceu como doméstica durante quinze anos. A patroa era professora de música e às vezes viajava. Era uma casa distanciada de vizinhos, Ya Dulcina exercitava todos os dias. E quando voltava para casa, recolhendo os filhos, na creche, na escola e na casa dos avós, o cansaço diário era dissipado pelas lembranças das músicas que tocara de dia, enquanto trabalhava. E assim, foi se formando a pianista, mas sem esperança alguma de ter o instrumento um dia, um piano seu. Não se importava tanto, a música lhe pertencia.

E quando Vitorino Jose Fortunato soube dos pendores musicais de sua mulher, se lembrou de outras competências tão importantes das mãos dela. Era uma eximia cozinheira e passava roupa como ninguém. Um sentimento de angústia e remorso invadiu o coração do homem. Como ele passara tanto tempo com Ya Dulcina, tivera nove filhos com ela e não percebera a música que ela trazia nos dedos? Era preciso comprar um piano para Ya Dulcina. Como? Deveria ser um instrumento caro, mas faria uma surpresa para ela. Ya Dulcina um dia teria um piano. E por isso, mesmo cansado, o velho pedreiro depois de aposentado vivia fazendo biscate. A cada dinheirinho ganho, fora da aposentadoria, uma poupança ia se fazendo para a compra do instrumento. E agora, mutilado para o trabalho, como dar um piano para Ya Dulcina?

No dia em que Vitorino José Fortunato recebeu a alta, para voltar para casa, quase seis meses depois da internação, o engenheiro Dr. Souto de Leve foi visitar o velho pedreiro no hospital. Vitorino José não queria receber o homem, mas ele impôs presença e chegou acompanhado de um advogado para tratar, ali mesmo, da indenização a que o pedreiro teria direito. Tudo acertado, uma boa quantia de dinheiro, liberado em um cheque bonito, assinado pelas letras trêmulas do engenheiro. O pedreiro recebeu o cheque em seus restos de dedos. Suas partes massacradas continuaram perdidas, irrecuperáveis na massa impura. Vitorino Luis Fortunato estava com o pai. Ambos choraram. O filho enxugando as lágrimas do pai, dizia que a mãe esperava por ele e que tinha feito a comida de que ele mais gostava, para celebrar a sua volta.

Vitorino José Fortunato retornou ao lar. No outro dia o piano chegou. E todas as tardes era comum, durante vários anos, ver e assistir uma mulher de cabelos prateados tocando um piano para um velho, que embevecido cochilava ao som do instrumento. Estava feliz. Suas mãos deram um piano para Ya Dulcina. Sim, elas construíram paredes musicais. Sua casa, constituída de pequenos aposentos, era invadida por todos os cantos pelos acordes musicais do piano, que o velho pedreiro conseguira oferecer para a sua mulher, Ya Dulcina.

Conceição Evaristo, por Aline Macedo

O Piano é o sexto episódio da série Um piano para Yá Dulcina, da romancista, contista e poeta Conceição Evaristo. Autora de sete livros, dentre eles Ponciá Vicêncio (Pallas Editora, 2003), Olhos D’Água (Pallas Editora, 2014) e Insubmissas Lágrimas de Mulheres (Editora Malê, 2016), faz das suas escrevivências a matéria-prima para compor textos nos quais dialogam a realidade e a ficção. Traduzida para o Inglês, o Francês, Espanhol e Árabe, é vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura, Prêmio do Governo de Minas Gerais pelo conjunto de sua obra, Prêmio Nicolás Guillén de Literatura pela Caribbean Philosophical Association, Prêmio Mestra das Periferias pelo Instituto Maria e João Aleixo. Toda semana, um episódio inédito em nosso Medium. O texto integra o projeto Folhetim, experimento literário do Sesc Pompeia que convida escritores a criarem narrativas inéditas.

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Experimento literário do Sesc Pompeia convida escritores a criarem narrativas inéditas