O sonho de Vinicius” | A dor nas costas, por Evandro Cruz Silva. Ep. 1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readJan 19, 2023

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Ilustração: Sabrina Savani

Vinicius é um adolescente branco que tem dor nas costas e um segredo. Ele espera numa fila de mercado, a TV sobreposta aos caixas mostra um programa policial. O rapaz olha de relance para a tela, vê o apresentador — seu terno e gravata, seus gestos largos — e sente um calafrio. Ele tenta se distrair enquanto aguarda para pagar uma compra que se resume a uma lata de refrigerante sabor laranja.

Pouco depois, Vinicius percebe que as atendentes dos caixas, as câmeras e os seguranças não conseguem vê-lo. Ele é o último da fila de um estabelecimento grande e vazio. À sua frente há um homem gordo e preto, uma espécie de biombo humano para seu corpo magro e branco.

Com um movimento rápido, o adolescente busca um pequeno saco de balas da gôndola e o coloca no bolso direito do moletom. Alguns instantes se passam, ele cumprimenta a atendente, paga o refrigerante e se despede. Cinco passos depois da saída do mercado, Vinicius coloca uma das balas na boca e arremessa o resto do pacote dentro do primeiro cesto de lixo que encontra.

No meio do caminho, enquanto termina o refrigerante, ele vê uma batida policial: fardados, brancos e gordos empunham armas enquanto uma fileira de pretos e esquálidos se encostam numa parede. O rapaz hesita, um dos policiais o encara. Vinicius percebe que os olhos daquele homem se transformaram em duas bolas pretas e fundas. Ele sente um baque.

Nauseado, Vinicius é acudido pelo policial. Seus olhos agora estão normais, e ele até percebe um tom acastanhado e bonito. O rapaz se ajeita, o policial sorri e deseja que ele tenha um bom dia. Ele retribui o sorriso e continua a caminhada até chegar a um prédio antigo, com portão de chave, sem portaria e cujo caminho interno dá direto na porta do elevador.

O elevador chega vazio, sua respiração vira um suspiro aliviado. A porta se abre, Vinicius chega ao apartamento e se certifica de que seus pais não estão em casa. Ele caminha até seu quarto e tranca a porta logo que entra. Se deita no colchão, reclina a cabeça, mira o teto e enxerga a entrada de um túnel que se fecha até o ponto da escuridão máxima.

E então Vinicius acorda. Atônito, ele se levanta, direciona seu olhar para o espelho retangular pendurado em posição vertical ao lado da cama e vê o que sempre vê assim que desperta: seu corpo magro, sua altura exagerada, sua pele verdadeira e preta. Ao esticar a lombar num alongamento, Vinicius percebe que o incômodo nas costas está melhor, menos aflitivo.

Ao lado da cama, um homem branco, idoso e fardado, com duas bolas pretas e fundas no lugar dos olhos e com uma estranha pá de carregar areia numa das mãos, reclina numa cadeira de balanço. Ele olha para Vinicius, pigarreia e pergunta com uma voz rouca: melhorou ou não a dor nas costas?

Evandro Cruz Silva | Foto: divulgação

Evandro Cruz Silva é sociólogo e escritor. Foi um dos vencedores do prêmio nacional Ensaísmo Serrote em 2020 e selecionado para o Forbes Under 30 em 2021 na categoria Artes Plásticas e Literatura. “Praia Artificial” (Patuá, 2021) é seu primeiro livro de contos e sua estreia na literatura.

Episódio 2: O peso em suas costas | 26/1

Episódio 3: Senhor Solidão| 2/2

Episódio 4: O fim da dor | 9/2

Episódio 5: A vida branca | 16/2

Episódio 6: Dores da Emancipação| 23/2

Revisão: Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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