“O tratamento de dona Turca com o mocororó?” | Os Encantados Tabajaras, por Auritha Tabajara. Ep.4

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readMay 4, 2023
Xilogravura por Lucélia Borges

Era noite de toré

Pra o mocororó fazer,

A garrafa de cem anos

Tomar e abastecer,

A bisavó estar viva,

Essa tradição ativa

Até bisavó morrer.

*******

O pajé explica aos dois,

Que é preciso respeitar,

A mata, os animais,

A noite não pode entrar,

Dona Turca já sabia,

Na região que convivia,

Queria o rapaz pegar.

*****

Bebam do mocororó

Para as feridas sarar,

Fiquem na pedra sagrada,

Que eu vou de vocês cuidar,

Não joguem lixo no chão,

Escutem o ancião,

Para outra história contar.

*****

Depois das dezoito horas

A pedra vai se fechar,

E antes do sol nascer,

Ela abre sem chiar,

Não diga que é magia

Porque senão ela esfria

E alguém pode te flechar.

******

Os dois entraram na pedra

O rapaz triste chorando,

Pedindo pra não morrer,

Dona Turca quieta olhando,

A festa vai começar,

Ouviram alguém gritar,

E um fogo forte estralando.

******

Em altas horas da noite,

Forte pisada ecoou

Ao redor da pedra grande

A aldeia balanceou,

Na batida do maracá

Tinha até um tamanduá,

Que um Tabajara flechou.

*****

A pedra tem um segredo,

Somente quem acredita,

É encantada por dentro,

Por fora muito bonita,

No formato de um cocar

Ao redor de um maracá.

Na cor de aragonita.

******

Pois não é que de manhã

A pedra ficou fechada,

O ancião mais idoso

Fez o rezo da flechada,

A pedra não se abriu

Será que os dois sumiu

Dentro da pedra encantada?

******

A história se espalhou

Todos queriam checar,

Uns diziam: é mentira

Outros: não, pois eu fui lá,

E a pedra misteriosa

Vai ficando bem famosa

Pras bandas do Ceará.

*****

Anos depois desse caso,

Um ancião faleceu

Bem perto da pedra grande

Enterraram o corpo seu,

Foi na época do verão,

Um lindo pé de algodão

Naquela cova nasceu.

******

Os mistérios do meu povo

Ninguém pode desvendar,

Minha avó conta as histórias

Eu ouço para contar,

E aquele pé de algodão?

Hoje em toda região

Se tem roupas do tear.

******

Nas festas que acontecem

Quem tem sensibilidade

Vê o moço passeando

Ali na comunidade,

E dona Turca o que diz?

Saiu pelo uma raiz

E assombra até na cidade.

*****

Dona Turca não se banha,

Vive suja de tristeza,

Um dia lá na lagoa,

O peixe com gentileza,

Disse: venha se encantar

Na água que vem do mar

Se espalhar na correnteza.

*****

A história dessa lagoa

É rica de encantamento,

Tem a faixa imaginária,

Escrita o acontecimento,

De quem já ultrapassou,

O peixe logo levou,

Pra falar de ensinamento.

*****

Ninguém ultrapassa a faixa

Da criança ao ancião,

Uma vez ultrapassaram

A água virou um chão,

Secou tudo num instante,

Por isso é importante

Ouvi-los com atenção.

*****

O peixe é grande e bonito,

Só costuma aparecer

Quando a aldeia tá em perigo,

Ou alguém vai falecer,

Ele aparece e canta

Cada vez nasce uma planta,

Que é para não esquecer.

*****

Ele se chama aponã

Aquele que vê além,

Protetor das águas doces,

E da floresta também,

E nos dá inspiração,

Pra futura geração,

Saber o que lhe convém.

******

Os mistérios da aldeia

São para nos proteger

Tem o canto da nambu

Nos diz quando vai chover

O grito do bacurau,

Que aparece no girau

Antes do amanhecer.

*****

Tabajara e natureza

Nunca serão separados,

O grito da meia-noite

Nos deixa sempre alertado,

Quem matou meus ancestrais

Anda sofrendo de mais,

Por não ter nos respeitado.

Foto: divulgação

Sou Auritha cordelista,
Nascida longe da praia,
Fascinada pela rima
E melodia da jandaia,
No Ceará foi a festa,
Meu leito foi a floresta,
Nas folhas de samambaia.

Francisca Aurilene Gomes, nasceu num pequeno interior do Ceará, em casa pelas mãos de duas sábias parteiras, avó Francisca Gomes e Antonia Portela. Primeira neta dos avós maternos e por essa razão o nome ancestral de Auritha o qual assina suas obras literárias, cresceu ouvindo as lindas histórias de tradição contadas por sua avó. Apaixonada pela rima escreve desde que aprendeu a ler e escrever. Atualmente mora em São Paulo, é escritora cordelista, Terapeuta Holística em ervas medicinais, contadora de histórias indígenas, palestrante e oficineira. Auritha é a primeira mulher indígena a publicar livros em literatura de cordel no Brasil.

Episódio 1: A Velha Turca

Episódio 2: Dona Turca na aldeia

Episódio 3: O sagrado pé de caju e o tratamento de dona Turca com o mocororó

Episódio 4: O tratamento de dona Turca com o mocororó?

Episódio 5: 11/4

Episódio 6: 18/4

Revisão: Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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