“Se ler esses episódios […]” | Os Encantados Tabajaras, por Auritha Tabajara. Ep.5

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readMay 11, 2023
Xilogravura por Lucélia Borges

Se ler esses episódios

Do jeito que foi contado,

Vê logo que os Tabajara

Nunca serão do passado

Que a nossa ancestralidade

E a nossa diversidade

Sempre serão repassado.

******

Essa aconteceu comigo,

Quando eu era adolescente,

Estudava em outra cidade,

Crescer educadamente,

Um carro aberto atrás

Que funcionava a gás

Era o que levava a gente.

*****

Não tinha banco no carro,

E nenhuma cobertura,

Caderno e lápis na mão

Uma blusa na cintura,

Mochila nem conhecia

Todo dia agradecia,

A volta era uma aventura.

******

Levava um tamborete

Pois lá não tinha cadeira

Era uma felicidade

Quando subia a ladeira

E podia avistar

A frase: venha estudar!

Coberto assim de poeira.

*****

A escola era uma casa

De barro todo perfeito,

Morava o professor

O pai dele era o prefeito,

A mãe também professora

A irmã vereadora

Mas que tinham preconceito.

******

Eu era a única indígena

Numa escola regular,

Apelido de feiosa

Ninguém queria brincar,

Era a mais inteligente,

Talvez a mais transparente,

Que tudo queria rimar.

******

E não podia dizer

Que na aldeia morava,

Nem falar a nossa língua

Logo era ignorada

Será que ninguém entende?

Nossa língua não ofende.

Ou eu sou mal-educada?

******

Queria escrever na língua

Mas ninguém soube ensinar

Foi então que a poesia

Veio a me iluminar,

Minha mente transformando,

Quando estou declamando,

Sinto o coração pulsar.

******

Um dia vindo da escola

A onça estava na estrada,

Todo mundo sentiu medo

Da onça atravessada,

Eu disse para ela assim:

Não sinta medo de mim,

Eu te vi lá na entrada.

******

Nunca fez mal a ninguém

Ela é nossa protetora,

Só não vá mexer com ela,

Como fez a diretora,

Passou sem pedir licença

A onça sem paciência

Comeu ela e a inspetora.

*******

Tive uma infância livre

Onde vivia a brincar

Com a onça, gato do mato,

No rio podia nadar,

Comer fruta bem fresquinha,

Tirar leite da vaquinha,

E bem quentinho tomar.

*******

Andava de bicicleta

Corria com pés na areia

Dormia às 18 horas

Em redes lá na aldeia,

Antes ouvia histórias

Que compõem minhas memórias

Nas noites de lua cheia.

******

Acordava bem cedinho

Para vovó ajudar

Tirar água da cacimba

Depois a roupa lavar

No riacho da pedreira

Onde ouvia as guerreiras

Que não queriam casar.

******

Tomava café quentinho

Com cuscuz ou macaxeira,

Batata doce e inhame,

Pamonha da verdadeira,

Ovo cozido era a senha,

Pro peixe assado na lenha,

E um banho de cachoeira.

*******

Não achava que era ruim

Ajudar na plantação

Porque sei que a mãe terra

Não gosta de lixo não,

E produz nosso sustento,

Além de bom alimento

Faz a nossa proteção.

*******

Quando eu aprendi a ler

Queria tudo rimar

Os chás das ervas caseiras

Para escrito ficar

Que as plantas medicinais

Vêm dos nossos ancestrais

Não podem nunca acabar.

*****

Minha avó não sabe ler

Mas escreve com urucum,

Grafismo fixo na pedra,

E na rede de tucum

Fuma o seu petinguá

Canta com seu maracá

Comendo araticum.

*******

E na minha adolescência?

Não queria namorar

Pois ouvia minha mãe

Com outra mãe conversar

Que ela não era feliz

Tinha forte cicatriz

E começava a chorar.

******

Mas me contava histórias

Lindas quando ia deitar

Do fogo que é nosso avó,

Hoje tem que digitar,

Em vez da oralidade

Fora da comunidade

Para o povo acreditar.

Foto: divulgação

Sou Auritha cordelista,
Nascida longe da praia,
Fascinada pela rima
E melodia da jandaia,
No Ceará foi a festa,
Meu leito foi a floresta,
Nas folhas de samambaia.

Francisca Aurilene Gomes, nasceu num pequeno interior do Ceará, em casa pelas mãos de duas sábias parteiras, avó Francisca Gomes e Antonia Portela. Primeira neta dos avós maternos e por essa razão o nome ancestral de Auritha o qual assina suas obras literárias, cresceu ouvindo as lindas histórias de tradição contadas por sua avó. Apaixonada pela rima escreve desde que aprendeu a ler e escrever. Atualmente mora em São Paulo, é escritora cordelista, Terapeuta Holística em ervas medicinais, contadora de histórias indígenas, palestrante e oficineira. Auritha é a primeira mulher indígena a publicar livros em literatura de cordel no Brasil.

Episódio 1: A Velha Turca

Episódio 2: Dona Turca na aldeia

Episódio 3: O sagrado pé de caju e o tratamento de dona Turca com o mocororó

Episódio 4: O tratamento de dona Turca com o mocororó?

Episódio 5: Se ler esses episódios […]

Episódio 6: 18/4

Revisão: Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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