Tietê” | Rodô, por Marcelino Freire. Ep. 2

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readSep 21, 2022
Ilustração: Uberê Guelé

Se é nome de rio, cadê o rio?
O que entende por rio uma cidade que sepulta a fonte límpida?
Um estacionamento de carros endiabrados, sobre o rio morto um engarrafamento de fumaças.
Vi de longe, assim que cheguei, entre as janelas permitidas. Vi. Do canteiro alto da rodoviária avista-se o mar de pneus. Ao longe, uma procissão sem fé nem felicidade.
Para onde vai quem mal chegou feito eu se o aviso já foi dado?
Repetiu-se o aviso: és um visionário.
Primeiro, procurei um canto para me arranjar com os apetrechos da missão divina. O que carrega um santo em seu bornal falido?
Trouxe comigo: um livro, algumas camisas brancas. Pedaço de queijo, uma farofa doce, mais objetos de madeira, uns botões floridos. Um dinheiro contado. Aqui em São Paulo já tem muito dinheiro. Minha falta de dinheiro não fará falta alguma.
Moedinhas.
Onde dorme um emissário celestial?
Um banco da rodoviária, azul, encostado a uma parede última e descascada, longe das sindicâncias policiais. Fiquei ali, matutando. Também trouxe comigo duas caixas.
A ideia é proferir uma palavra ao vento?
Fazer um discurso inaugural?
Anunciar: eu sou José Jesus do Piauí.
E daí?
Não entendo ainda as artimanhas de um milagre. Abrirei caminho entre os carros enfileirados? Transformarei cansaço em um oceano de tranquilidade?
Na dúvida, encostei a cabeça.
Alguma certeza me guiou até este lugar, Estação Tietê, em que não param de desembarcar caipiras, trabalhadores, cortadores de cana, bailarinas de papangu, eletricistas solitários.
Será que já sabem de mim?
Porque a toda hora alguém me nota. Olha para mim procurando para onde olhar. Qualquer aceno que eu dê, de tão pobre, será um acontecimento milionário. Desde pequeno abro um sorriso silencioso. Abraço o próximo com esses meus olhos nordestinos.
Por enquanto, ficarão sonhando. Meus olhos foram pestanejando, até cair. Sobre os apetrechos, as caixas, ali mesmo dormi alguns instantes demorados, não contei.
Gosto de uma imagem de Jesus no Monte das Oliveiras. Sentado perto de uma pedreira, Jesus tirou uma soneca, fez uma pausa em seu exercício de vigilância, espírito de luta, muito há para ser feito, solícito, valente em comunhão.
Qual coração vive parado?
Bem-aventurados os limpos de coração porque eles verão a Deus.
Sonhei com uma cachoeira, os peixes descendo a correnteza, as pedras tão absolutas em sua circulação, lá em Esperantina eu, tomando banho de raios, pela manhã, ao final da tarde, o Tietê não era uma miragem, era real, eu conseguirei desafogar as águas deste rio, deste barulho metálico de rodas caminhoneiras, para onde desembocam os dentes de tantas engrenagens, garagens de concretos vazios, Meu Deus?
De súbito, minha cabeça retornou para a realidade. Acordado e atordoado. Cadê as caixas? Sumiram. Alguém também levou as moedas pequenas. E até um relógio que, falsamente agarrado ao meu pulso, nunca funcionou. Os policiais nem viram o assalto. Eu não senti nenhum ruído de pólvora ou de invasão. Quanto tempo haveria de ter passado?
Eis a minha primeira provação.
Atravessar, com a pouca roupa do corpo, a fome e aquilo que sente quem é beato e penitente.
Uma profunda solidão.

Marcelino Freire | Foto: Mario Miranda Filho

Marcelino Freire escreveu, entre outros, “Contos Negreiros” (Editora Record, 2005), com o qual foi vencedor do Prêmio Jabuti. Em 2013 lançou, pela Editora Record, o romance “Nossos Ossos” (Prêmio Machado de Assis). É o criador e curador da Balada Literária, evento que acontece desde 2006 em São Paulo.

Outros episódios:

Episódio 1: José Jesus do Piauí

Episódio 2: Tietê

Episódio 3: A Missão| 28/9

Episódio 4: O Milagre| 5/10

Episódio 5: A Resposta| 12/10

Episódio 6: Esperantina | 19/10

Revisão: Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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