“Túnis” | Como Valentina aprendeu português (uma história de amor) , por Luiz Ruffato, Ep. 2

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readDec 9, 2020

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Para Juliana Loyola e Pasquale Cipro Neto

Ilustração: Tadeu Costa

Após todos elogiarmos a elegância do prato e a correção do vinho, Roberta, percebendo o constrangimento de Silvio, fustigou Valentina, Silvio, sua mulher é um poço de mistério… Sem olhar para a amiga, Valentina disse, bem-humorada: Gente, minha vida é um livro aberto, mas não tenho culpa se nem as pessoas mais próximas sabem sequer onde eu nasci… Roberta deteve o garfo no ar e perguntou, espantada, Não foi aqui em Milão?! Valentina balançou a cabeça negativamente, e, com certa perversidade, voltou a mastigar, sem pressa. Silvio murmurou, Se não foi em Milão… Mas calou-se, intimidado. A jovem jornalista arriscou: Numa aldeia romântica e perdida à beira do Tirreno, talvez?… Ignorando-a, Valentina levou o guardanapo de linho aos lábios, tomou um gole da taça, e disse, Não, Roberta, não nasci em Milão, nasci em Túnis, e esperou o efeito daquela revelação inesperada. Túnis?!, exclamaram todos. Na Tunísia?, Roberta conferiu, admirada. Ah, então você é africana?, comentou Anna, com sarcasmo, sendo novamente ignorada por Valentina, que resolvera desprezá-la com toda a sua força, e achei inusitado aquilo. Como ela se fechara em silêncio, Mattia, o marido de Paola, um tipo deveras curioso, cavanhaque e gravata borboleta, perguntou, Mas como foi isso? Então, Valentina, dirigindo-se a todos, mas como que explicasse unicamente a mim, começou a contar sua história, interrompida apenas para conduzir pequenas porções de mondeghilli à boca e sorver longos goles de vinho.

- Em meados da década de 50, meu pai era o maior revendedor da Fiat de todo o norte da África. Possuía loja na Avenue de Carthage, em Túnis, exercia larga influência junto à comunidade italiana, ainda grande na época, e guardava boas relações com os franceses e os árabes. Estava muito bem de vida, morava sozinho em La Goletta e se divertia à beça nas praias de La Marsa, Gammarth, Nabeul, Hammamet — nomes que não me dizem nada, mas que decorei de tanto ouvir o Papà pronunciá-los, com nostalgia… Mas ele já rondava os trinta anos e se sentia pressionado a casar, isso ajudaria a dar credibilidade aos negócios… Quando vinha a Milão, ele flertava com minha mãe, dez anos mais jovem, e durante certo tempo eles mantiveram intensa troca de correspondência. Um dia, minha mãe recebeu uma carta em que meu pai a pedia em casamento. As famílias, que eram vizinhas em Brera, não se opuseram e as coisas se precipitaram. A cerimônia transcorreu na igreja de San Maurizio, com aqueles magníficos afrescos de Bernardino Luini e a contrafachada de Simone Peterzano, o álbum de fotografias é deslumbrante. A lua-de-mel passaram no Hôtel du Cap, em Antibes, na Côte D’Azur, uma estada no paraíso, Maman recordava esses dias mágicos até no seu leito de morte. Então, regressaram à Tunísia, onde foram viver numa casa charmosíssima em Sidi Bou Saïdi, e um ano depois nasceu minha irmã, Marta, que a Roberta conhece, na véspera da Independência do país.

(continua)

Luiz Ruffato, por Filipe Ruffato

Túnis é o segundo episódio da série Como Valentina aprendeu português (uma história de amor), do escritor Luiz Ruffato. Autor de Eles eram muitos cavalos, Estive em Lisboa e lembrei de você, Flores artificiais, De mim já nem se lembra, Inferno provisório, entre outros, seus livros ganharam prêmios nacionais (Machado de Assis, APCA, Jabuti) e internacionais (Casa de las Américas, em Cuba; Escritor Galego Universal, na Galiza; e Hermann Hesse, na Alemanha). O verão tardio é seu mais recente romance.

Outros episódios:

1º episódio: Milão

3º episódio: Rio de Janeiro

4º episódio: Intervalo

5º episódio: Agora, em português

6º episódio: Epílogo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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