“volta de temporada” | cobranças, por Luiza Romão. Ep.1
“Y al fin y al cabo,
en el fútbol,
como en todo,
la justicia es mejor que los milagros,
aunque ella nos duela.”
(Eduardo Galeano)
desde que ronaldinho gaúcho popularizou a cobrança por baixo
no chão há sempre um homem
tombado
mãos sobre os ovos
olhos nas costas torcendo
não caiam em cima de mim
o melhor entre os defensores
escudo atrás da barreira
encolhido entre panturrilhas
esse homem tombado
por susto ou malícia
deve esse homem
eis seu dever
evitar milagres
como se nesta pelota domingueira
garça contra faísca
tivesse alguma possibilidade
de sair gol rasteiro
resmungo
mas não seria isso que faz
um milagre receber esse nome
seu pereira me provoca
descasca amendoins
mastiga lento
farelos na barba
continua
do bruxo esperamos um gol por baixo
mas dos dianteiros do faísca
desajeitados feito dois bonecos de pebolim
seu pereira quase engasga
aí sim seria um milagre
dou três tapinhas nas suas costas
um afago no cocuruto
pois sim seu pereira
seria para canonizar no altar
junto a rivaldo e ibrahimović
ele recupera o fôlego
eu ofereço refri
obrigado renatinha
se fizerem um gol rasteiro
você me de deve cinquenta
pego um punhado puxado no sal
mais que isso
tatuo o nome do felizardo na perna
rimos
no campo o camisa 10 trama com o 22
o arqueiro adversário mexe e mexe
barreira mais à esquerda recua
o homem permanece tombado
aproveita o descanso
arranca pedaços de grama
com petelecos lança-os para a área
milagre seria voltar a vê-lo
dou um último gole
mato a latinha numa pisada
o estádio sua suspira
o sol passeia pela retranca alvirrubra
se muitos somos quinhentos faíscas
o mesmo grito por noventa minutos
do outro lado não passam de trinta
duas arquibancadas em ângulo reto
de um lado os vestiários
do outro a paróquia
janelas tapadas
madeirite no lugar dos vitrais
partidos incontáveis vezes
na esquina direita 0 x 1
pintado em compensado
tipografia oitentera em rubro-amarelo
da sua cabine miltão espera o desenlace
segura o número 1 só por se acaso
há anos controla o placar
muda os painéis soma os feitos
essa cobrança não sai hoje
seu pereira já não aguenta
pula dois degraus corridinha
alambrado corridinha banheiro
me confia
pacote de amendoim bandeira
um pedaço de tecido vermelho 2 por 1,5
no centro uma foto de mike em dourado
o braço esquerdo roda a camiseta no ar
ele canta
contente
viro a bandeira para mim
milagre seria voltar a vê-lo
me aproximo do alambrado
estendo seu rosto na grade
o técnico grita uma última instrução
o camisa 10 toma distância
seu pereira ressurge suado
enfim o juiz apita
nesse átimo toda possibilidade
tornar-se santo
conduzir a pelota entre salto e solo
só nos milagres
para isso estão os homens tombados
Luiza Romão é Poeta, atriz e slammer. É autora dos livros Sangria (selo doburro), Também guardamos pedras aqui (Editora Nós — Prémio Jabuti de Poesia e Livro do Ano 2022; Semifinalista no Prêmio Oceanos) e Nadine (Editora Quelônio). Há anos, participa da cena de saraus e slams da cidade de São Paulo. É Mestra em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP), pesquisando voz, poesia e slam, e co-fundadora da Coletiva Palabreria.
Episódio 1
Episódio 2: 27/7
Episódio 3: 3/8
Episódio 4: 10/8
Episódio 5: 17/8
Episódio 6: 24/8
Revisão: Tatiane Ivo