“ 2ª parte” | Há de se ter caminhos emergindo, por Raquel Almeida. Ep.2

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readSep 21, 2023

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Ilustração: Kaio Ka

Do outro lado

Aqui estou eu, parada diante desses caminhos cruzados na parede, toda suja de tinta, hipnotizada, olhando o desenho que tomou forma sozinho, eu desalinhada, quase entrando em choque escorrendo o nariz igual escorria a tinta, passando a mão no meu rosto e o vermelho da parede se misturando na minha pele caramelo. Sinto um abraço enlaçando todo o meu corpo, e eu não consigo me soltar, um redemoinho passando pelas minhas pernas, apaguei.

O que é isto?

Falei alto, coçando os olhos pra tentar entender direito, o cheiro de mofo com o cheiro da tinta me entontece.

Onde é que eu vim parar?

Minha pele avermelhada, a beirada da rua onde estou é azul, levanto, aqui estou eu, bem no meio da encruzilhada que desenhei na parede embolorada. O céu estava amarelado, o chão cheio de pedras, venta muito aqui e o cheiro de mofo quase me sufoca.

Como eu vim parar aqui?

Na minha parede, que me aborrece e enfeia a casa que já não é bela, ela parece maldita, presa nesses caminhos que não sei aonde vão dar. Choro deitada no centro da encruza, suja, descalça e sem cigarros, só pode ser piada, nada da minha casa à vista, nada da casa, só o cheiro mesmo da parede mofada que já não visualizo.

O que é aquilo?

Em um dos caminhos, um vulto bem na minha frente, me levanto lentamente, mas não consigo ver. Caminho em direção à estrada que anuncia alguém, ou alguma coisa, sim, o medo bate, bati os pés na lama, caramba, a estrada é de lama. Na minha direção, a pessoa se parte em duas, uma mulher de aparência mais velha, com vestes brancas, cabelos grisalhos, olhos serenos e expressão de satisfação, a outra era uma adolescente me olhando com cara de julgamento. Eu tento caminhar em direção a elas para pedir ajuda, mas estou atolada, a lama não me deixa andar, uma leve névoa não permite que eu as veja direito, mas conforme esfrego os olhos elas se aproximam.

Mas é isso aí que você virou?

A adolescente fala com jeitinho debochado, só adolescente tem o dom de ser naturalmente irritante, espera, sou eu, ela sou eu, eu adolescente!

Levante Madá.

Essa voz é da mais velha, só era o que me faltava, um encontro comigo mesma, hahaha.

Pelo menos seu senso de humor não morreu, apesar de você ter matado o riso várias vezes. A velha solta num tom de ironia.

É que sorrir e ter senso de humor nunca tiveram muito a ver, o riso é uma dualidade, você pode sorrir de alegria ou sorrir de maldade, eu posso ter um ótimo senso de humor e não sorrir.

Boa análise!

A mais velha fala como se quisesse comandar o papo.

A adolescente caminha em minha direção, anda de um lado para o outro, parece tentar analisar um jeito de me tirar da lama, antes que eu possa falar, ela se adianta.

Infelizmente nem eu nem a senhora ali vamos poder te ajudar, dessa lama aí você vai ter que sair sozinha, Madá!

Esse deboche me incomoda tanto, eu era assim mesmo? Insuportável? Eu tentava esconder meu horror na acidez das palavras, na forma rude que eu tratava aos demais, foi quando comecei a pintar.

É isso aí, a gente, que dizer, eu, eu saía com uma bolsa tiracolo com alguns sprays, encontrava os amigos e ia pixar por aí, a gangue da Z/O, a gangue de dois, hahahaha, eu e o Peba. Ele era firmeza, hein, foi nossa primeira perda, né, apareceu morto com uma bala na cabeça no terreno baldio lá perto de casa, engraçado que, além de pixar e fumar um, o Peba não fazia mais nada de errado, ele até trabalhava de feirante. Lembra? Ou é mais um dos assuntos que você não gosta de falar?

Foi o primeiro desenho meu que teve alguma relevância, desenhei a cara do Peba no muro do terreno e escrevi, bem grande: O QUE EU FIZ PRA MORRER ASSIM? Ninguém tinha coragem de encarar aquele muro, nem eu. O Peba me livrou de várias, de enquadro, de apanhar da mãe, de ser estuprada… E quando ele morreu eu perdi um protetor, todo mundo zé povinhava que a gente era casal, mas ele falava que eu parecia a irmãzinha dele que morreu criança, lembra? A Rafaela foi atropelada por um caminhão na porta da nossa casa.

Por que ela está falando tudo isso? Menina chata!

São histórias que caberiam no compartimento do esquecimento, tanto sofrimento, tanta dor. Logo cedo esmigalhando nossa existência nesse mundo, eu preciso sair daqui.

Foto: Carol Freitas

Raquel Almeida é poeta, escritora, arte — educadora e produtora cultural. fundadora do Coletivo literário Elo da Corrente, grupo que atua no bairro de Pirituba, desde 2007, no movimento de literatura periférica/negra, realizando um sarau mensal e mantendo uma biblioteca comunitária no bar onde realiza o sarau. Iniciou seu trabalho artístico em 2005 cantando no grupo de rap Alerta ao Sistema e atuou na rádio comunitária urbanos FM 2006/2007. Ministra oficinas de literatura e criação poética em escolas, centros culturais entre outros espaços.

Episódio 1

Episódio 2

Episódio 3: 28/9

Episódio 4: 5/10

Episódio 5: 12/10

Episódio 6: 19/10

Revisão: Michel Yakini e Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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