“A memória de uma mulher” | Incêndio, por Clara Averbuck, Ep. 3

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readMay 5, 2021
Ilustração: Eva Uviedo

Quando falo de minha memória, eu me refiro à Zelda morta. Aquela cuja morte precisei forjar e sumir com o corpo entre tantos outros corpos de mulheres irreconhecíveis carbonizadas por um incêndio que eu até hoje não sei se foi criminoso, mas sei que foi minha chance. A memória que carrego comigo segue vívida e vasta como a vida que teria pela frente.

Pois é, minha memória que me faz pensar como foi que eu me meti naquilo. Como disse um pensador contemporâneo, não era amor, era cilada. E esse tipo de cilada a gente só percebe quando está longe, longe. Na hora, parece tão bom que tudo aceitamos, tudo acatamos, tudo, ou quase tudo, perdoamos. Eu era jovem e linda, inteligente, tinha o dinheiro sem esforço de uma família que me desprezava, poderia ter sido o que quisesse — ou pelo menos tentar. Mas não. Fui ser mulher de alguém. Então, me escutem, jovens, vocês podem até casar, mas nunca o façam com alguém que tenha a mesma profissão que vocês. Se for artista, pior ainda. Se for músico, apenas fuja. Mas me escute: mantenha-se distante da ideia de que um parceiro que tem o mesmo objetivo que você vai vê-la como uma parceira no crime. Vocês não estão assaltando um banco e dividindo o prêmio. Poderiam. E talvez você até dê a sorte que não dei, mas, observando tantas outras, tem que ter mesmo muita, mas muita sorte para encontrar alguém que não fique competindo com você pelos mesmos espaços e que não fuja com todo o dinheiro do assalto, enquanto você fica para trás. No meu caso, usurpando minhas ideias, que eu, no começo, tratava como sugestões de bom grado aos textos de meu marido, meu amor, minha metade, até ver que acabei mesmo por ser metade, depois de ter feito tanto esforço para ser uma mulher inteira.

Minhas páginas começaram a desaparecer. Ele insistia que eu estava louca. De fato, estava ficando. Como poderiam sumir minhas páginas? Será que eu andava bebendo tanto e tomando tantas pílulas que perdia meus próprios escritos? Será que eles nem existiam? Oh, meu amor, me conforte!

No começo, isso importava pouco. As páginas, eu poderia reescrever; meu homem era só um. Eu louca por ele, ele louco por mim, mais tarde os dois apenas loucos. Meu amor, minha pessoa, os braços que me envolviam, o sexo melhor que qualquer literatura, nossa vida, um livro que escreveríamos juntos até a morte, até o fim. “Case sim, irmãzinha, depois me conte”, disse-me certa vez uma mulher mais velha e sábia. Claro que não ouvi, assim como outras também não me escutarão, mas se lembrarão dessas palavras.

Nossa identidade e nossa memória são as únicas coisas que temos na vida. Uma delas eu tive que esconder para sempre.

Clara Averbuck (acervo pessoal)

A memória de uma mulher é o terceiro episódio da série “Incêndio”, da escritora Clara Averbuck. A escritora tem nove livros publicados. Já teve a obra adaptada para cinema e teatro e foi publicada em Portugal, Inglaterra e países da América Latina. Escreveu para inúmeros sites, revistas e jornais Brasil afora. Escreveu uma peça de teatro, é pole dancer e dá aulas de escrita desde 2015.

Outros episódios:

1º episódio: Vida nova

2º episódio: Menina não pode

4º episódio: Copo transbordando

5º episódio: Encarceramento

6º episódio: Morta, mas não muito

Revisão: Regina Stocklen

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