“As 300 Faces de Eva”, por Stefano Volp. Ep. 1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readJun 22, 2022

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Ilustração: Ella Santos

Houve um tempo na vida em que a única coisa que mantinha Eva em segurança era habitar em um casulo de água e sangue próximo das vísceras maternas, sugando energia vital, nutrida por cavalares doses de expectativa quanto à sua chegada.

— A barriga está pontuda demais para ser menina, linda — dizia Malva, uma das mães.

— Eu quero menina e assim será — concluía Paula, a mãe que gestava o bebê.

Malva e Paula formavam um casal composto de duas melhores amigas de infância. Não conheciam a vida sem a presença e o carinho uma da outra. No pequeno vilarejo chamado Rosácea, as pessoas admiravam o amor e a cumplicidade entre as duas desde que eram pequeninas. Até mesmo quando Paula se encantou por Taim, o jardineiro negro que passou a cuidar do jardim.

— Você largaria aquela amarga para ficar comigo? — perguntou o homem na última vez em que se deitou com a amante no meio do expediente.

— Ela não é amarga assim — disse Paula, escondendo um sorriso. O coração batia forte. Era loucamente apaixonada pela esposa, mas Taim também lhe virava a cabeça, e ela sempre se feria um pouco mais pelo medo de defender seus prazeres.

Contudo, não precisou dizer muita coisa. Um dia, Malva, que já andava desconfiada daquela pouca vergonha, resolvera chegar do emprego mais cedo. Quando pegou os dois juntos na cama em que tantas vezes ela amou sua Paula, o ódio consumiu-a com tanta intensidade que ela sacou a espingarda escondida no armário e atirou no peito de Taim.

Nunca mais se ouviu falar daquele homem. E o tempo, que é um deus, cicatrizou a ferida entre as duas. As linhas do perdão e do respeito levaram alguns meses para se regeneraram. No entanto, quando a harmonia voltou a uni-las, Paula descobriu que seus enjoos recentes tinham o mais assustador dos motivos.

— Diga logo! Está me deixando nervosa — reclamou Malva, importunada pela cerimônia que a outra fazia para revelar o tal do segredo.

— Você não percebe? — perguntou Paula, trêmula dos pés à cabeça. — Estou muito maior. E todos esses vômitos… Não é uma doença, Ma. Não posso mais esconder.

Os olhos de Malva faiscaram embevecidos em um rancor antigo.

— Isso é impossível.

Por medo do que viria, Paula então inventou uma história sobre ter sido forçada por um estrangeiro nas noites em que a esposa passara viajando. Houve de fato um estrangeiro na cidade, pálido como a neve, todos haviam visto. Mas a semente que plantara aquele bebê, sua filha, Paula bem sabia de onde vinha.

Três meses depois, perto da meia-noite, Rosácea inteira pôde ouvir os urros da gestante. O corpo da mãe queria vomitar Eva para a vida, arrancá-la do único lugar onde ela se sentiria segura. Paula parecia adivinhar o futuro complicado de sua menina, porque fez de tudo para mantê-la o máximo possível dentro de si. Ao final do parto, a mãe fechou os olhos para sempre antes mesmo de ver a cor de seu bebê. Preta como a noite. Preta como aquele homem morto e odiado.

Malva, clara feito a lua mais brilhante, teve ódio e nojo do que viu. Então proferiu a maldição que Eva carregaria para sempre:

— Você é tão horrenda que as pessoas terão medo de você. Por trezentos caminhos passarás e perturbarás as pessoas em todos eles. Até que não sobre mais nada em você.

Stefano Volp | Crédito da imagem: Victor Vieira

Stefano Volp é escritor e roteirista, autor de 5 livros de ficção, entre eles “Homens pretos (não) choram” e “O Segredo das larvas”, best-sellers na Amazon e sucessos de público. Em 2022, Volp lançou o thriller “O Beijo do Rio” pela TAG, um dos maiores serviços de assinatura de livros do Brasil, sendo distribuído para mais de 35 mil leitores. Volp já trabalhou em salas de roteiro para a Globoplay e Netflix, além de ter escrito para a Folha de São Paulo e revista Veja.

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