“As 300 faces de Eva”, por Stefano Volp. Ep. 2
A vida em Rosácea podia ser muito rotineira para a maioria das pessoas, incluindo Eva. Sua sequência de tarefas domésticas se repetia desde os seis anos de idade, quando Malva já a obrigava a cumprir as atividades mais indesejáveis, como lavar a latrina e esfregar os azulejos da cozinha até que o rejunte brilhasse. De todas as tarefas, a que Eva mais odiava era cuidar do galinheiro. A madrasta, que, quando espumava raiva, costumava dizer “Achou que ia crescer sem mãe, não foi? Pois agora eu sou sua mãe!”, obrigava a garotinha a matar e depenar as galinhas. Incumbida do martírio, Eva o cumpria sentindo-se como uma chaleira em ebulição. Por dentro, o sangue fervia. Por fora, o suor na testa e as lágrimas nos olhos.
Contudo, foi no galinheiro que a menina fez sua primeira e única melhor amiga. Nize, a galinha chocadeira. Só que a amizade ficou por um fio na manhã em que Nize não colocou nenhum ovo. Malva queria pelo menos três e, quando Eva retornou para casa sem a quantidade certa, agarrou a garota pelos ombros.
— Pois hoje você vai passar o dia e a noite com aquela galinha imbecil — rosnou Malva. — Só vai voltar aqui quando ela botar dois ovos!
— Eu não me importo — respondeu Eva, a vozinha muito fina, porém, destemida. — É melhor ficar com Nize do que com você.
As palavras da pequena arderam em Malva. Então ela a agarrou pelos cabelos, os quais chamava de betume e a trancafiou dentro do galinheiro dizendo que só uma das duas poderia sair viva dali. Dois dias depois, Eva conseguiu arrancar a vida de sua melhor amiga, pois tinha medo de morrer de fome e sempre imaginara outras mortes para si mesma.
Naquela época, Eva não fazia ideia do que viria pela frente. Na maior parte do tempo, ela se achava merecedora de todo o sofrimento. Talvez ainda fosse pouco para uma garota que matara a própria mãe ao nascer. Era o que Malva dizia.
Certa vez, a menina cortava a grama do jardim quando uma vizinha, negra como ela, ofereceu-lhe um sorriso gentil e seguiu caminhando, até parar, refletir, retroceder furiosa e bater na porta da casa de Malva.
— Ela precisa ir para a escola! Você não pode ser tão má com ela assim — disse a mulher quando Malva abriu a porta com uma sobrancelha erguida.
— É você quem paga as minhas contas? — perguntou Malva. — Se não gostou, leve essazinha com você. Pode levar. Vocês bem que se parecem.
A mulher foi embora abismada com a resposta, mas mal sabia que, por conta desse gesto, em poucas semanas Eva seria, finalmente, matriculada no colégio da região. Foi somente por causa da escola que Eva descobriu sua idade e o dia de seu aniversário.
A professora tentou evitar fazer aquele olhar o qual Eva estava acostumada a receber das pessoas quando viam seu rosto. Mas quando ela a apresentou diante da turma, ninguém fez questão de esconder o desconforto.
— Por que o seu cabelo está cheio de… sangue? — perguntou uma garota com cara de nojo.
Todos estranharam a pergunta.
— Ela é careca, sua burra. Não vê?
— Por que os seus olhos são vermelhos? Meu deus do céu.
— Que vermelhos o que. São pretos!
Depois da sucessão de brigas, a professora se viu obrigada a pedir que pelo menos dez crianças descrevessem Eva. Para o desespero de todos, nenhuma descrição se repetiu. As crianças não estavam brincando nem nada.
Eva ficou aterrorizada. Pior ainda, aquele não era um momento isolado e em mais alguns dias ela teria absoluta certeza disso! Em casa, Eva roubou um espelho de Malva e correu para o galinheiro. Então, como se tivesse plena consciência nos primeiros minutos de sua vida, Eva viu seu reflexo repetir palavras de Malva que aferroaram seu espírito.
Tinha sido uma maldição.
Eva tinha, sim, trezentas faces.
Cada pessoa via nela um rosto diferente, e com cada uma de suas máscaras, a garota seria capaz de queimar o mundo.
Stefano Volp é escritor e roteirista, autor de 5 livros de ficção, entre eles “Homens pretos (não) choram” e “O Segredo das larvas”, best-sellers na Amazon e sucessos de público. Em 2022, Volp lançou o thriller “O Beijo do Rio” pela TAG, um dos maiores serviços de assinatura de livros do Brasil, sendo distribuído para mais de 35 mil leitores. Volp já trabalhou em salas de roteiro para a Globoplay e Netflix, além de ter escrito para a Folha de São Paulo e revista Veja.