“Encarceramento” | Incêndio, por Clara Averbuck, Ep. 5

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readMay 19, 2021
Ilustração: Eva Uviedo

Mas o fracasso, caros, pode ser o caminho do sucesso.

Pode também não ser. Mas sucesso é algo relativo; para mim, o sucesso dele, falso, é um fracasso e uma farsa, que não traz paz ao deitar a cabeça no travesseiro. Por isso, ele só dormia bêbado, e eu, dopada. Não mais ao lado dele. Mesmo que ainda fosse possível, seu cheiro me trazia ojeriza. O cheiro de um traidor. Não um adúltero; com isso sequer me importaria. A traição de sugar a boceta de outra mulher ou, tanto faz, engolir o pau de outro homem nem chega perto de se apossar dos escritos da alma de quem você dizia amar.

Ele podia me trancar, mas não podia trancar minhas ideias, apesar de poder roubar e se apropriar de minhas criações. Eu era infinita; ele, se não encontrasse outra com talento para sugar, estava fadado à vergonha de não estar à altura de sua “própria” produção. Um dia, eu sabia, minha autoria viria à tona. Talvez saber disso fosse apenas uma fagulha de esperança da justiça que as mulheres trancafiadas e usurpadas mantêm viva para que a vontade de viver não as abandone.

Estava sendo privada de minha autoria, de viver uma paixão, de sexo bom, da liberdade que me havia sido prometida… E estava sendo chamada de louca. Internada. Encarcerada. Louca, a louca que atrapalhava o gênio, o gênio que dizia perder seu tempo precioso e sua fortuna enorme, que não era fortuna, mas uma dívida, aliás, que crescia, não por minha causa, mas por suas festinhas nas quais pagava bebidas caras para todos e seguia fingindo riqueza. Fortuna fictícia, falsamente desperdiçada em clínicas e tratamentos para a louca que escrevia os textos que ele copiava, enquanto ela — e só ela — enlouquecia, enlouquecia de beber, de tristeza, de mania, de depressão, de desgosto. De raiva.

Para os outros, apenas a louca.

Quando a louca e talentosa bailarina foi convidada para integrar um corpo de dança internacional, mais uma vez teve seu sonho tesourado. Não, não. Não. A partir do momento que adotou aquele sobrenome de marido, abriu mão de si. Ele decidiria. Não ao divórcio, não à independência e não, mas nunca mesmo, ao seu corpo em outro corpo de dança fora de seu controle.

De volta à clínica. De volta aos remédios que dopavam, mas não matavam o rancor que crescia em seu peito. De volta à apatia e a um plano que só poderia dar errado.

Se não tivesse funcionado, esta história teria se perdido, como tantas.

O fogo foi apagado. Eu, não.

Clara Averbuck (acervo pessoal)

Encarceramento é o quinto episódio da série “Incêndio”, da escritora Clara Averbuck. A escritora tem nove livros publicados. Já teve a obra adaptada para cinema e teatro e foi publicada em Portugal, Inglaterra e países da América Latina. Escreveu para inúmeros sites, revistas e jornais Brasil afora. Escreveu uma peça de teatro, é pole dancer e dá aulas de escrita desde 2015.

Outros episódios:

1º episódio: Vida nova

2º episódio: Menina não pode

3º episódio: A memória de uma mulher

4º episódio: Copo transbordando

6º episódio: Morta, mas não muito

Revisão: Regina Stocklen

--

--

FOLHETIM | Sesc Pompeia

Experimento literário do Sesc Pompeia convida escritores a criarem narrativas inéditas