Fio de Prumo” | Um piano para Yá Dulcina, por Conceição Evaristo, Ep. 1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readSep 9, 2020

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Ilustração: Iléa Ferraz

Quando Vitorino José Fortunato, o velho pedreiro, chegou desmaiado ao hospital, levado por um de seus filhos, o nono, Vitorino Luis Fortunato, pelo amarelado no rosto negro do homem, parecia ele já estar morto. Os lençóis que cobriam a maca e o ferido tinham alguns pedaços brancos, não ensanguentados ainda. Isto dava a impressão de que eram vermelhos, com algumas manchas brancas nas pontas. Alguém que esperava para ser atendido logo afirmou que o homem tinha sido vítima de um tiroteio. Outro, que nem tempo tivera para olhar o ferido, levantou a voz e disse:

— Quer ver só?! Esse bandido ainda vai ser atendido primeiro do que a gente!

Vitorino Luis Fortunato olhou a pessoa que tinha feito a última afirmativa, mas não conseguiu retrucar nada. Nenhuma palavra saiu, só mais uma dor entrou. Ainda bem que o pai estava desmaiado, segundo informaram os paramédicos, e não morto. Se ele não estivesse desacordado e escutasse o julgamento que o idiota estava fazendo dele, se sentiria humilhado, caluniado, injustiçado. Se não fosse a gravidade da hora, Luis iria falar com o homem. Que atrevido! Por que aquele julgamento? Baseado em que os dois homens concluíam que tinha sido um ataque a um bandido? Estaria acontecendo algum tiroteio pelas redondezas do hospital? Não, tal coisa não poderia acontecer. O hospital superlotaria, e mais difícil ficaria o atendimento para o pai dele. E ele, o velho pedreiro, não merecia tanto sofrimento. Bastava o que ele já havia vivido.

Em pé enquanto esperava o elevador, Vitorino Luis sentiu os olhares raivosos de todos que estavam aguardando o atendimento. Cochichos, muxoxos dançavam no ar. Voltou a fixar o corpo do pai estendido sobre a maca, parecia morto. Não, seu pai não merecia aquele fim. Lágrimas brincavam desde dentro do coração do moço. Quis passar a mão no rosto para impedir que elas rolassem. Não conseguiu o menor gesto. Sentiu-se menino e o pai estava gravemente ferido. Quem lhe traria o consolo?

Vitorino Luis Fortunato, dos nove filhos, era o que mais parecia com o pai. Em tudo. Caladão feito o velho. E como o pai, também era pedreiro. Aprendera desde muito jovem a profissão. Ficava encantado com a habilidade do pai. O velho pedreiro, conhecedor de poucas palavras escritas, lia silabado as de grande extensão, mas decifrava em um momento os desenhos que os engenheiros e arquitetos colocavam em suas mãos. De cabeça fazia os cálculos do material que seria necessário para construção de um pequeno quarto ou de uma grande mansão. De areia, cimento e tijolos, entendia como ninguém. Batia os olhos em um carregamento e era capaz de imaginar quantos milheiros de tijolos havia ali. Erguia uma parede como se fosse uma obra de arte. E era. Os tijolos com tijolos se casavam, como se pedaços retangulares de barro fossem capazes de sentimentos amorosos uns com os outros. Tudo bem emparelhadinho. Justo, reto, em obediência ao fio de prumo. Um cuidado particular, dizia ele, tinha de ser dedicado ao alicerce de uma casa. Se a fundação fosse fraca, mesmo se a casa fosse ao final uma exposição de belezura, ela viria a desabar um dia. Era do pai também a habilidade de medir com presteza a quantidade exata de água para fazer uma boa argamassa. Areia, cimento e água tinham de ter medidas exatas, para que a massa tivesse uma liga apropriada capaz de receber os tijolos, que afundavam nela, para não mais se desgarrar. Quando a argamassa estava boa, o velho pedreiro, Vitorino José Fortunato, dizia que ela estava “no ponto”.

Contemplando o pai, por entre lágrimas, ensanguentado, rumo à sala de cirurgia do grande hospital público da cidade, o filho sabia que a situação estava invertida. O pai agora era o menino que precisava de consolo. Sim, ele consolaria o pai. Seu pai sempre fora o seu esteio, o seu fio de prumo.

Conceição Evaristo, por Aline Macedo

Fio de Prumo” é o primeiro episódio da série Um piano para Yá Dulcina, da romancista, contista e poeta Conceição Evaristo. Autora de sete livros, dentre eles Ponciá Vicêncio (Pallas Editora, 2003), Olhos D’Água (Pallas Editora, 2014) e Insubmissas Lágrimas de Mulheres (Editora Malê, 2016), faz das suas escrevivências a matéria-prima para compor textos nos quais dialogam a realidade e a ficção. Traduzida para o Inglês, o Francês, Espanhol e Árabe, é vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura, Prêmio do Governo de Minas Gerais pelo conjunto de sua obra, Prêmio Nicolás Guillén de Literatura pela Caribbean Philosophical Association, Prêmio Mestra das Periferias pelo Instituto Maria e João Aleixo. Toda semana, um episódio inédito em nosso Medium. O texto integra o projeto Folhetim, experimento literário do Sesc Pompeia que convida escritores a criarem narrativas inéditas.

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Experimento literário do Sesc Pompeia convida escritores a criarem narrativas inéditas