“Você nasceu ontem, mas antes já tinha estado neste mundo” | Peixe fora d’água com banzo, por Elizandra Souza, Ep. 1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readJan 27, 2021

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Ilustração: Carol Itzá

Em uma noite quente, em sua cama de madeira forrada com lençóis brancos, Rosa se virava de um lado para outro, inquieta.

Sonhava com uma menininha com duas trancinhas, pernas grossas, cor de chocolate, sorriso quase sem dentes, que com a curiosidade do mundo apontava para o rio.

Suas águas desfilavam para a direita, carregando flores de girassóis.

Rosa chegou mais perto, preocupada para que a menina não caísse no rio.

O despertador tocou e ela acordou sem saber a continuação daquele sonho, mas com a sensação de que de fato tinha vivido tudo aquilo.

Sentia-se mãe daquela menininha, e o nome seria Oyin. Para os iorubás, mel simboliza a doçura, a delicadeza e a calmaria.

Foi tomar banho. Enquanto a água deslizava em seu corpo, se perguntava por onde teria passado aquelas águas. Será que em grutas, cachoeiras, riachos, rios? Por que sonhou com elas caminhando para a direita? E aqueles girassóis? E a menina? Tão real aquele sonho.

Saiu do banho, olhou no guarda-roupa, nenhuma peça agradava.

No cantinho encontrou um vestido longo amarelo que não usava há muito tempo.

Diante do espelho, se viu girassol.

Calçou uma sandália baixa de couro branco, pintou os lábios com batom marrom cintilante.

Foi até a arara perto da porta e pegou o colar de fatias de bananas envernizadas e sementes de olho-de-boi, que ganhou de um antigo amor.

Recusou os brincos, pois seriam muitos adereços para apenas uma manhã.

Na cozinha abriu a geladeira, pegou um iogurte natural. Caminhou até o armário, retirou uma pequena tigela, faca e colher, na fruteira, uma banana. Sentou-se diante da mesa, despejou o iogurte, a granola, incluiu a banana e uma pitada de canela. Degustando o seu desjejum, saboreando a canela, lembrou que ela é tão poderosa que fazia as pessoas dizerem sim e olhar bem dentro dos olhos. Deve ser por isso que recomendam para os que procuram um amor banho de rosas vermelhas e canela.

Suspirou e disse pra si mesma:

- Acho que estou precisando de um banho desses.

Trim!!!!!!!!!!!!!Trim!!!!!!!!!!!!!!!

- Bom dia, filha! Dormiu bem?

- Bom dia, mainha!

- Dormi sim, mas sonhei com flores de girassóis, rio, uma menina pretinha linda, parece com minha futura filha.

- Sonhar com rio é o símbolo da vida e criança saudável é felicidade.

- Tomara mãe. Estou ficando velha, quero uma família, me sinto só.

- Eu falei pra não sair de casa, mas você com essas manias de independência. Saiba que sua mãe está sempre aqui de braços abertos. Se quiser voltar, seu quarto continua do mesmo jeito.

- Agradecida, mainha. Te amo muito, viu?

- Eu também te amo. Filha, você não está atrasada? Se eu não telefono você perde a hora né, mocinha?

- Tchau, hoje à noite passo pra te dar um beijo.

- Fica com Deus. Terça-feira Vou ficar te esperando para jantar.

Depois que desligou o telefone colocou o disco de vinil do Sampa Crew na sua velha vitrola: “…mas você ignorou e outra vez se apaixonou… deixa a maré abaixar calmaria, não me deixe sozinho nessa ilha…”.

Pegou a bolsa e de dentro tirou uma agenda que marcava seus compromissos do dia. Percebeu que já estava atrasada para entrevistar um sociólogo no Butantã.

Elizandra Souza, por Fernando Solidade

Você nasceu ontem, mas antes já tinha estado neste mundo é o primeiro episódio da série “Peixe fora d’água com banzo”, da escritora Elizandra Souza. A autora é ativista cultural há 18 anos com ênfase na difusão do jornalismo cultural da Periferia e da Literatura Negra Feminina. É integrante fundadora do Sarau das Pretas desde 2016, autora dos livros de poesias Águas da Cabaça (2012) e Punga, em co-autoria Akins Kintê (2007). Além disso, foi editora do Coletivo Mjiba dos livros Águas da Cabaça (2012), Pretextos de Mulheres Negras (2013) e Terra Fértil (2014). Também atuou como editora e jornalista responsável na Agenda Cultural da Periferia na Ação Educativa (2007- 2017), participou do Festival Internacional de Poesia em Havana (Cuba), 2016, e do Congresso LASA / Nuestra América: Justice and Inclusion, em Boston (EUA), 2019.

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