“ 3ª parte” | Há de se ter caminhos emergindo, por Raquel Almeida. Ep.3

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readSep 28, 2023

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Ilustração: Kaio Ka

Na lama

Me puxa pra baixo sempre, a cada palavra dessa eu menina que aparece num tom acusatório, ela vai contando, saboreando as palavras como doce, ela vem despindo a minha insegurança e eu afundo. Não é ao certo o gelo da morte, é do barro que podemos reviver, mas por que será que eu afundo? Daqui só vejo os caminhos azuis que eu criei numa parede embolorada, mas será possível estar nesse lugar? A lama é densa, escorregadia, como pode? Nem chovendo está! Será que é minha consciência me alertando de onde estou e para onde vou? Quando eu menina me coloca essa culpa, lembro que cresci com ela e que toda minha arte permeia essa filosofia de se curar dos traumas que não são tratados como traumas, eu menina deixou de ser eu há tantos anos, eu enterrei a Madazinha da Z/O e fundei a Madá artista plástica do submundo, fazendo um paralelo de onde me colocaram nessa sociedade.

Me jogaram na selva, e refiz minha morada, burlei família e pesos e me refiz, viu menina! Olha aqui!

Eu cresci doente, você se retraiu, o desenho do Peba foi o mais relevante para sua idade, depois dele, criei tantos outros, desenhos, artes que me sustentaram.

Ah sim. E o que você faz aqui nessa parede mofada? Eu sonhei bem mais para nós, Madallena.

A eu mais velha só me olha com riso nos olhos, não fala, não esboça nenhuma expressão, ela apenas ouve o diálogo conturbado da adolecente e eu.

Nossos traumas continuam os mesmos, eu nem saí deles. Você achou que tinha deixado de ser eu, mas eu morei todos esses anos bem dentro de você. E você me alimentou todas as vezes, você me deu de comer, de beber, saciou meu submundo, tragou a minha raiva e soltou em pequenas cutiluas de fumaça e ira, você me manteve aquecida todos esses anos. Lembra, Madá, que você olhava nos bailes os meninos que apareciam com suas namoradinhas descoladas lá da Vila América, aquele condomínio fechado? Nos bailes elas iam e pegavam os nossos amigos, os vulgos bandidinhos do outro lado. Quando eu comecei a namorar, foi desastroso, parecia que eu cobrava alguma coisa dele que nem eu sabia o que era, estava nos dois na insatisfação, terminamos, meses depois ele me aparece no baile com aquela menina pálida dá a américa, eu fiquei observando os dois de longe, ela abraçava ele pelas costas, dava vários beijos, na nuca dele, ela assumia o papel de controle que ele tinha comigo, nos bailes. Essa simples leitura fez você entender agora, adulta, que isso faz eles se sentirem mais valorizados, e que bobagem né, se com a gente ele não dá espaço, brecha, nem margem.

Papo brabo pra uma menina, né?

Você me nutriu, Madá, só que eu falo, ao contrário de você, que decidiu que não adiantava falar mais nada, você só engoliu, e quando eu transpareço a frente, é quando sua voz salta, esqueceu? Somos extensão, e eu sendo você jovem é a ira que você prendeu.

Como uma mão me puxando para baixo, a lama me engole um pouquinho mais, me sinto impotente sobre a fala e olhares da minha adolescente que bota pra fora todas as minhas insatisfações. Uma mão me alcança enquanto a lama chega na minha cintura.

Você não quer ficar aí pra sempre, vem, vou te lavar.

Era a minha mais velha, porém, era serena e tinha um ar calmo, totalmente diferente da menina, e eu pergunto: como você se tornou essa mulher bonita e serena?

Nossos pés caminham junto com a cabeça, e foi vc que me deixou assim. Você lembra de como chegou até aqui?

Vagamente me lembro.

Pois bem, vc estava inconformada com uma situação, com a vida, você mudou tudo, mudou de casa, desmontou um sonho sonhando outros maiores, e lavou a alma mofada com cor para enxergar novos horizontes. Vem, caminhe comigo.

Foto: Carol Freitas

Raquel Almeida é poeta, escritora, arte — educadora e produtora cultural. fundadora do Coletivo literário Elo da Corrente, grupo que atua no bairro de Pirituba, desde 2007, no movimento de literatura periférica/negra, realizando um sarau mensal e mantendo uma biblioteca comunitária no bar onde realiza o sarau. Iniciou seu trabalho artístico em 2005 cantando no grupo de rap Alerta ao Sistema e atuou na rádio comunitária urbanos FM 2006/2007. Ministra oficinas de literatura e criação poética em escolas, centros culturais entre outros espaços.

Episódio 1

Episódio 2

Episódio 3

Episódio 4: 5/10

Episódio 5: 12/10

Episódio 6: 19/10

Revisão: Michel Yakini e Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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