“O reencontro” | Dessa vez é a última vez, por Sheyla Smanioto. Ep. 1
só parei de ver as assombrações
dos homens que meu marido matou
quando entrei na estrada, o ônibus entrou e eu
fui em silêncio
até a cidadezinha de Goiás
onde ele se meteu dizendo
que dessa vez
era a última vez.
*
fui com raiva por ter
na poltrona do ônibus de viagem
na poltrona
o que eu mais queria em casa, o que tinha me feito
sair pela porta com uma bolsa vazia.
não quis voltar
nem pra pegar o que precisava
nada ia me fazer voltar
antes de me livrar daqueles fantasmas.
*
falem agora! eu gritei para o nada,
o meu marido olhando
para o cigarro
os amigos dele dizendo que eu estava com ciúme
(alguns homens só conhecem 2 ou 3 sentimentos)
dele? quando eu só queria paz
quando eu só queria parar de ser atormentada
pela culpa, pelos homens que ele matou
me dizendo que era eu a culpada
como se eu tivesse afiado pra isso
a faca.
*
agora falem! eu gritei,
o meu ex-marido fingindo um engasgo
pra dizer que dessa vez
era a última vez que eu dava
um showzinho daqueles
e eu pensando no jeito que eu podia dar nele
era assim que as assombrações falavam
você devia ter dado um jeito
*
que jeito? eu tinha gritado
dias e mais dias
para os cantos da casa
minha vizinha
batia na porta e avisava
“você está fazendo aquilo de novo”.
*
por isso resolvi ir atrás dele em Goiás
como nos filmes
dar uma chance de os fantasmas
acertarem as contas, levá-los
como cartas
que chegaram ao endereço errado
ele não mora mais aqui! eu gritava
e a minha vizinha
batia na porta.
*
mas os fantasmas desapareceram
com a metrópole, eles me deixaram
falando sozinha
e agora eu volto pra São Paulo
de carro, um Monza dourado
“um favor”, ele me pediu, inferno
carregar além da culpa um carro
levá-lo
para um amigo na fronteira
de SP
não sei como aceitei nem por quê.
acho que eu não queria parecer mais louca
do que alguém que chega gritando
falem agora! e reclama
do desaparecimento de fantasmas.
*
eu aceitei pra poder ir embora?
eu não sei por que
só sei que agora eu
estou na estrada ajustando o banco eu
estou na estrada tentando entender o rádio eu
podia largar esse carro
aqui — bem aqui.
*
ir a pé
pedir carona?
fugir
dá pra perder o próprio nome
nas estradas de um país desse tamanho
eu podia explodir
o carro
o que eu não explodi
quando ele me pediu um favor
o desgraçado
um favor depois de ir embora
um favor depois de me deixar
sozinha com a culpa dele me dizendo
que a culpa era minha
que eu poderia ter feito algo
que mulher de verdade
consegue consertar
um homem quebrado
eu devia explodir
mulher de verdade sabe
eu devia corrigir
o erro de ter aceitado essas chaves
eu jurei que dessa vez
eu paro o carro
eu seguro na chave
uma mulher
abre a porta
que susto! ela sorri
“obrigada, muito obrigada
estou pedindo carona tem horas
e ninguém nem
me olhava”
eu devia explodir e eu vou explodir, calma
primeiro eu só vou
é rapidinho
levar essa mulher ao seu destino, o que tem
de mais
nisso?
“pra onde você vai?”
*
eu pergunto dando partida
“pra São Paulo”, ela fala
*
no começo parecia
uma coincidência
engraçada.
Sheyla Smanioto (Diadema, 1990) é praticante de escrita e de outras artes oraculares. Está em busca de uma vida e de uma escrita em queda livre, radicalmente conectadas com o Corpo e comprometidas com a criação de novos mundos. É autora do multipremiado Desesterro (2015) e do recém-lançado Meu corpo ainda quente (2020), romances que também são poesia e manifesto. Mantém o blog sheylasmanioto.com
Outros episódios:
2º episódio: Peso de papel
3º episódio: Um labirinto dentro do carro
4º episódio: Cartas depositadas na água
5º episódio: Querida Culpa
6º episódio: Fim
Revisão: Agnes Sofia Cruz