“O reencontro” | Dessa vez é a última vez, por Sheyla Smanioto. Ep. 1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readFeb 16, 2022

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Ilustração: Elisa Riemer

só parei de ver as assombrações

dos homens que meu marido matou

quando entrei na estrada, o ônibus entrou e eu

fui em silêncio

até a cidadezinha de Goiás

onde ele se meteu dizendo

que dessa vez

era a última vez.

*

fui com raiva por ter

na poltrona do ônibus de viagem

na poltrona

o que eu mais queria em casa, o que tinha me feito

sair pela porta com uma bolsa vazia.

não quis voltar

nem pra pegar o que precisava

nada ia me fazer voltar

antes de me livrar daqueles fantasmas.

*

falem agora! eu gritei para o nada,

o meu marido olhando

para o cigarro

os amigos dele dizendo que eu estava com ciúme

(alguns homens só conhecem 2 ou 3 sentimentos)

dele? quando eu só queria paz

quando eu só queria parar de ser atormentada

pela culpa, pelos homens que ele matou

me dizendo que era eu a culpada

como se eu tivesse afiado pra isso

a faca.

*

agora falem! eu gritei,

o meu ex-marido fingindo um engasgo

pra dizer que dessa vez

era a última vez que eu dava

um showzinho daqueles

e eu pensando no jeito que eu podia dar nele

era assim que as assombrações falavam

você devia ter dado um jeito

*

que jeito? eu tinha gritado

dias e mais dias

para os cantos da casa

minha vizinha

batia na porta e avisava

“você está fazendo aquilo de novo”.

*

por isso resolvi ir atrás dele em Goiás

como nos filmes

dar uma chance de os fantasmas

acertarem as contas, levá-los

como cartas

que chegaram ao endereço errado

ele não mora mais aqui! eu gritava

e a minha vizinha

batia na porta.

*

mas os fantasmas desapareceram

com a metrópole, eles me deixaram

falando sozinha

e agora eu volto pra São Paulo

de carro, um Monza dourado

“um favor”, ele me pediu, inferno

carregar além da culpa um carro

levá-lo

para um amigo na fronteira

de SP

não sei como aceitei nem por quê.

acho que eu não queria parecer mais louca

do que alguém que chega gritando

falem agora! e reclama

do desaparecimento de fantasmas.

*

eu aceitei pra poder ir embora?

eu não sei por que

só sei que agora eu

estou na estrada ajustando o banco eu

estou na estrada tentando entender o rádio eu

podia largar esse carro

aqui — bem aqui.

*

ir a pé

pedir carona?

fugir

dá pra perder o próprio nome

nas estradas de um país desse tamanho

eu podia explodir

o carro

o que eu não explodi

quando ele me pediu um favor

o desgraçado

um favor depois de ir embora

um favor depois de me deixar

sozinha com a culpa dele me dizendo

que a culpa era minha

que eu poderia ter feito algo

que mulher de verdade

consegue consertar

um homem quebrado

eu devia explodir

mulher de verdade sabe

eu devia corrigir

o erro de ter aceitado essas chaves

eu jurei que dessa vez

eu paro o carro

eu seguro na chave

uma mulher

abre a porta

que susto! ela sorri

“obrigada, muito obrigada

estou pedindo carona tem horas

e ninguém nem

me olhava”

eu devia explodir e eu vou explodir, calma

primeiro eu só vou

é rapidinho

levar essa mulher ao seu destino, o que tem

de mais

nisso?

“pra onde você vai?”

*

eu pergunto dando partida

“pra São Paulo”, ela fala

*

no começo parecia

uma coincidência

engraçada.

Sheyla Smanioto | Crédito: Acervo pessoal

Sheyla Smanioto (Diadema, 1990) é praticante de escrita e de outras artes oraculares. Está em busca de uma vida e de uma escrita em queda livre, radicalmente conectadas com o Corpo e comprometidas com a criação de novos mundos. É autora do multipremiado Desesterro (2015) e do recém-lançado Meu corpo ainda quente (2020), romances que também são poesia e manifesto. Mantém o blog sheylasmanioto.com

Outros episódios:

2º episódio: Peso de papel

3º episódio: Um labirinto dentro do carro

4º episódio: Cartas depositadas na água

5º episódio: Querida Culpa

6º episódio: Fim

Revisão: Agnes Sofia Cruz

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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