“Um labirinto dentro do carro” | Dessa vez é a última vez, por Sheyla Smanioto. Ep. 3
eu tinha que dar um jeito
de consertar o Monza dourado.
eu juro, o problema não era largar o carro, eu podia
dar um jeito, ir embora, sei lá,
pedir carona,
mandar à merda
o meu marido e aquela lata velha,
eu podia explodir
perder o nome na estrada
mas ela não
*
eu achava
que aquela mulher estava viva e precisava
entregar as tais cartas
um mapa
para o pai poder dar um nome ao corpo dela
se o encontrasse.
mas o corpo se encontrava no porta-malas,
isso eu ainda não sabia, então não,
não dá pra dizer que foi por isso que eu fingi olhar
o motor pela milésima vez, como uma criança
sozinha na porta da escola
fingindo não ter olhos
para não ter lágrimas.
*
– deixa esse carro aí — ela me disse,
ela ouviu meus pensamentos?
– e como é que eu vou te levar
para São Paulo? não, eu vou dar um jeito, eu só
– eu me viro, não se preocupa com
– mas as cartas
– eu dou um jeito
– mas o seu nome
– eu dou um jeito
– mas e
– é sua chance, você não queria
se livrar desse fantasma?
*
um caminhão passou rasgando o chão, deixou
pra trás um silêncio maior do que o que encontrou, deixou
pra trás o meu silêncio, por que eu disse sim?
quando ele me pediu pra levar o carro
por que eu aceitei? pra poder ir embora?
eu não sei por quê,
só sei que agora eu
estou na beira da estrada olhando o labirinto de um motor eu
estou na beira da estrada tentando entender o mapa eu
podia largar esse carro
agora
eu podia jogar no chão
essa ferramenta suja
eu podia ir a pé
pedir carona
fugir
eu podia explodir
o carro
o que eu não explodi
quando o desgraçado me pediu um favor
depois de me deixar sozinha
com a culpa dele me dizendo
que a culpa era toda minha
que eu poderia ter feito algo
que mulher de verdade
consegue consertar um homem
eu podia explodir
eu podia? eu realmente podia?
porque agora
olhando o labirinto
mecânico desse carro
seria tão mais fácil, mas eu não alcanço
eu não alcanço
está no fundo de mim e eu não alcanço
– eu não consigo.
– tudo bem
– eu sei que eu
devia explodir,
mas eu não
eu sei que eu
devia sei lá eu
– vamos consertar
– eu
– juntas.
*
quando a gente conseguiu
eu nem acreditei, eu gritei
no meio da estrada
ela gritou
nós gritamos juntas, pulamos
juntas, virou uma festa
a estrada, eu e ela
uma festa dessas que quando acabam
deixam no peito um suspiro
o rosto ainda lembrando o sorriso
naquele momento eu tive certeza
ela também, dava pra sentir
a gente se olhou e soube
que juntas a gente podia tudo
tudo, escrever as cartas assombradas
levá-las para SP
tudo
tudo mesmo,
*
– a gente vai dar um fim nesse carro, né?
– vamos antes que eu perca a coragem.
como é que eu ia saber?
Sheyla Smanioto (Diadema, 1990) é praticante de escrita e de outras artes oraculares. Está em busca de uma vida e de uma escrita em queda livre, radicalmente conectadas com o Corpo e comprometidas com a criação de novos mundos. É autora do multipremiado Desesterro (2015) e do recém-lançado Meu corpo ainda quente (2020), romances que também são poesia e manifesto. Mantém o blog sheylasmanioto.com
Outros episódios:
1º episódio: O reencontro
2º episódio: Peso de papel
4º episódio: Cartas depositadas na água
5º episódio: Querida Culpa
6º episódio: Fim
Revisão: Agnes Sofia Cruz