“Um labirinto dentro do carro” | Dessa vez é a última vez, por Sheyla Smanioto. Ep. 3

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readMar 2, 2022

--

Ilustração: Elisa Riemer

eu tinha que dar um jeito

de consertar o Monza dourado.

eu juro, o problema não era largar o carro, eu podia

dar um jeito, ir embora, sei lá,

pedir carona,

mandar à merda

o meu marido e aquela lata velha,

eu podia explodir

perder o nome na estrada

mas ela não

*

eu achava

que aquela mulher estava viva e precisava

entregar as tais cartas

um mapa

para o pai poder dar um nome ao corpo dela

se o encontrasse.

mas o corpo se encontrava no porta-malas,

isso eu ainda não sabia, então não,

não dá pra dizer que foi por isso que eu fingi olhar

o motor pela milésima vez, como uma criança

sozinha na porta da escola

fingindo não ter olhos

para não ter lágrimas.

*

– deixa esse carro aí — ela me disse,

ela ouviu meus pensamentos?

– e como é que eu vou te levar

para São Paulo? não, eu vou dar um jeito, eu só

– eu me viro, não se preocupa com

– mas as cartas

– eu dou um jeito

– mas o seu nome

– eu dou um jeito

– mas e

– é sua chance, você não queria

se livrar desse fantasma?

*

um caminhão passou rasgando o chão, deixou

pra trás um silêncio maior do que o que encontrou, deixou

pra trás o meu silêncio, por que eu disse sim?

quando ele me pediu pra levar o carro

por que eu aceitei? pra poder ir embora?

eu não sei por quê,

só sei que agora eu

estou na beira da estrada olhando o labirinto de um motor eu

estou na beira da estrada tentando entender o mapa eu

podia largar esse carro

agora

eu podia jogar no chão

essa ferramenta suja

eu podia ir a pé

pedir carona

fugir

eu podia explodir

o carro

o que eu não explodi

quando o desgraçado me pediu um favor

depois de me deixar sozinha

com a culpa dele me dizendo

que a culpa era toda minha

que eu poderia ter feito algo

que mulher de verdade

consegue consertar um homem

eu podia explodir

eu podia? eu realmente podia?

porque agora

olhando o labirinto

mecânico desse carro

seria tão mais fácil, mas eu não alcanço

eu não alcanço

está no fundo de mim e eu não alcanço

– eu não consigo.

– tudo bem

– eu sei que eu

devia explodir,

mas eu não

eu sei que eu

devia sei lá eu

– vamos consertar

– eu

– juntas.

*

quando a gente conseguiu

eu nem acreditei, eu gritei

no meio da estrada

ela gritou

nós gritamos juntas, pulamos

juntas, virou uma festa

a estrada, eu e ela

uma festa dessas que quando acabam

deixam no peito um suspiro

o rosto ainda lembrando o sorriso

naquele momento eu tive certeza

ela também, dava pra sentir

a gente se olhou e soube

que juntas a gente podia tudo

tudo, escrever as cartas assombradas

levá-las para SP

tudo

tudo mesmo,

*

– a gente vai dar um fim nesse carro, né?

– vamos antes que eu perca a coragem.

como é que eu ia saber?

Sheyla Smanioto | Crédito: Acervo pessoal

Sheyla Smanioto (Diadema, 1990) é praticante de escrita e de outras artes oraculares. Está em busca de uma vida e de uma escrita em queda livre, radicalmente conectadas com o Corpo e comprometidas com a criação de novos mundos. É autora do multipremiado Desesterro (2015) e do recém-lançado Meu corpo ainda quente (2020), romances que também são poesia e manifesto. Mantém o blog sheylasmanioto.com

Outros episódios:

1º episódio: O reencontro

2º episódio: Peso de papel

4º episódio: Cartas depositadas na água

5º episódio: Querida Culpa

6º episódio: Fim

Revisão: Agnes Sofia Cruz

--

--

FOLHETIM | Sesc Pompeia

Experimento literário do Sesc Pompeia convida escritores a criarem narrativas inéditas