“Peso de papel” | Dessa vez é a última vez, por Sheyla Smanioto. Ep. 2

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readFeb 23, 2022

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Ilustração: Elisa Riemer

depois de um tempo

você, uma desconhecida e o vento

até parece

que foram feitos um para o outro

acho que é a magia da estrada.

*

já nos primeiros quilômetros ela me diz

que foi jurada de morte e que seu maior medo

é ser enterrada sem nome, eu acho um medo engraçado

ela ri junto

eu paro de rir, ela fala:

“por isso estou indo para São Paulo”.

*

eu conto pra ela dos fantasmas, ela me diz

que talvez eles só queiram atenção e não saibam

como pedir

eu dou risada

ela ri junto:

acho que é a magia da estrada.

*

eu paro o carro

preciso fumar

ela me pede ajuda

para escrever uma carta, eu concordo

com medo de estragar seu sorriso.

*

eu acendo o cigarro e apoio o papel

no carro torcendo para não ser uma carta

de amor, o tempo

seco apoia no meu rosto

o assobio apoia no vento

de repente

tudo soa

efêmero.

*

o senhor lembra de mim, pai?

ela começa

*

o senhor sempre dizia que eu ia embora, bem que o senhor

disse que eu ia sumir e só ia voltar

quando precisasse de ajuda

eu ofereço um trago

ela aponta para o papel

como se ele também estivesse

queimando

*

o senhor lembra meu corpo, pai?

a lombriga no queixo eu ainda tenho

foi de empinar pipa, o senhor reclamava

toda vez que eu empinava pipa, lembra?

sempre que eu vejo uma pipa

estrangulada nos fios e também os tênis

mortos pelos cadarços,

eu lembro do senhor

ainda bem que o senhor não tinha

cerol nos dedos.

*

ela dá risada e eu não sei se

*

o senhor lembra?

dos vergões. das pauladas estralando

minhas costelas. para aprender a não ficar

andando por aí feito homem, o senhor

lembra? lembra, não lembra, pai? mas, tudo bem

se o senhor não lembrar. minhas costas

têm um mapa

talhado a pauladas.

o senhor deve lembrar

das minhas costas, eu não esqueço

o bafo do chão

no meu rosto

o cheiro

então o senhor deve lembrar

das minhas costas rasgadas

eu tinha oito anos

hoje minhas costas

ainda apodrecem, hein, pai

minhas costas são o mapa

elas são o mapa se o senhor

não reconhecer mais nada.

*

o cigarro

consumido entre os dedos

a caneta

também, eu tento disfarçar

fingir que não ouvi o que escrevia

como se fosse possível

não ouvir o que a mão coloca nas linhas, como se fosse possível

não chorar junto de alguém com quem a gente ria, “vamos

nessa? depois a gente”

*

mas se mesmo assim o senhor não lembrar

é para isso que escrevo essas cartas. elas são outro mapa,

outro mapa pro senhor reconhecer meu corpo.

*

entramos no carro,

“que barulho é esse?”

ela pergunta, mas é só

o carro desmoronando e de alguma forma

isso não me é estranho, acho que porque eu também

não estava mais aguentando o peso

daquelas palavras.

*

o carro não ligava

e de repente parecia fácil

largar tudo ali

explodir

o carro

o que eu não explodi

dá pra perder o próprio nome

nas estradas de um país desse tamanho

eu repeti pra mim mesma e parecia

fácil e impossível

largar a mulher que vinha comigo

eu não sabia como, mas ia ter que dar um jeito

de consertar o carro, ir com ela

até São Paulo

eu me sentia responsável

pelo nome dela e eu ainda nem sabia

do corpo, eu juro que não sabia

que ela estava tão distante

e tão próxima

do próprio medo

do próprio corpo

1 metro?

1 metro e meio? qual a distância

do banco da frente de um Monza

para o seu porta-malas

traseiro?

Sheyla Smanioto | Crédito: Acervo pessoal

Sheyla Smanioto (Diadema, 1990) é praticante de escrita e de outras artes oraculares. Está em busca de uma vida e de uma escrita em queda livre, radicalmente conectadas com o Corpo e comprometidas com a criação de novos mundos. É autora do multipremiado Desesterro (2015) e do recém-lançado Meu corpo ainda quente (2020), romances que também são poesia e manifesto. Mantém o blog sheylasmanioto.com

Outros episódios:

1º episódio: O reencontro

3º episódio: Um labirinto dentro do carro

4º episódio: Cartas depositadas na água

5º episódio: Querida Culpa

6º episódio: Fim

Revisão: Agnes Sofia Cruz

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