“Peso de papel” | Dessa vez é a última vez, por Sheyla Smanioto. Ep. 2
depois de um tempo
você, uma desconhecida e o vento
até parece
que foram feitos um para o outro
acho que é a magia da estrada.
*
já nos primeiros quilômetros ela me diz
que foi jurada de morte e que seu maior medo
é ser enterrada sem nome, eu acho um medo engraçado
ela ri junto
eu paro de rir, ela fala:
“por isso estou indo para São Paulo”.
*
eu conto pra ela dos fantasmas, ela me diz
que talvez eles só queiram atenção e não saibam
como pedir
eu dou risada
ela ri junto:
acho que é a magia da estrada.
*
eu paro o carro
preciso fumar
ela me pede ajuda
para escrever uma carta, eu concordo
com medo de estragar seu sorriso.
*
eu acendo o cigarro e apoio o papel
no carro torcendo para não ser uma carta
de amor, o tempo
seco apoia no meu rosto
o assobio apoia no vento
de repente
tudo soa
efêmero.
*
o senhor lembra de mim, pai?
ela começa
*
o senhor sempre dizia que eu ia embora, bem que o senhor
disse que eu ia sumir e só ia voltar
quando precisasse de ajuda
eu ofereço um trago
ela aponta para o papel
como se ele também estivesse
queimando
*
o senhor lembra meu corpo, pai?
a lombriga no queixo eu ainda tenho
foi de empinar pipa, o senhor reclamava
toda vez que eu empinava pipa, lembra?
sempre que eu vejo uma pipa
estrangulada nos fios e também os tênis
mortos pelos cadarços,
eu lembro do senhor
ainda bem que o senhor não tinha
cerol nos dedos.
*
ela dá risada e eu não sei se
*
o senhor lembra?
dos vergões. das pauladas estralando
minhas costelas. para aprender a não ficar
andando por aí feito homem, o senhor
lembra? lembra, não lembra, pai? mas, tudo bem
se o senhor não lembrar. minhas costas
têm um mapa
talhado a pauladas.
o senhor deve lembrar
das minhas costas, eu não esqueço
o bafo do chão
no meu rosto
o cheiro
então o senhor deve lembrar
das minhas costas rasgadas
eu tinha oito anos
hoje minhas costas
ainda apodrecem, hein, pai
minhas costas são o mapa
elas são o mapa se o senhor
não reconhecer mais nada.
*
o cigarro
consumido entre os dedos
a caneta
também, eu tento disfarçar
fingir que não ouvi o que escrevia
como se fosse possível
não ouvir o que a mão coloca nas linhas, como se fosse possível
não chorar junto de alguém com quem a gente ria, “vamos
nessa? depois a gente”
*
mas se mesmo assim o senhor não lembrar
é para isso que escrevo essas cartas. elas são outro mapa,
outro mapa pro senhor reconhecer meu corpo.
*
entramos no carro,
“que barulho é esse?”
ela pergunta, mas é só
o carro desmoronando e de alguma forma
isso não me é estranho, acho que porque eu também
não estava mais aguentando o peso
daquelas palavras.
*
o carro não ligava
e de repente parecia fácil
largar tudo ali
explodir
o carro
o que eu não explodi
dá pra perder o próprio nome
nas estradas de um país desse tamanho
eu repeti pra mim mesma e parecia
fácil e impossível
largar a mulher que vinha comigo
eu não sabia como, mas ia ter que dar um jeito
de consertar o carro, ir com ela
até São Paulo
eu me sentia responsável
pelo nome dela e eu ainda nem sabia
do corpo, eu juro que não sabia
que ela estava tão distante
e tão próxima
do próprio medo
do próprio corpo
1 metro?
1 metro e meio? qual a distância
do banco da frente de um Monza
para o seu porta-malas
traseiro?
Sheyla Smanioto (Diadema, 1990) é praticante de escrita e de outras artes oraculares. Está em busca de uma vida e de uma escrita em queda livre, radicalmente conectadas com o Corpo e comprometidas com a criação de novos mundos. É autora do multipremiado Desesterro (2015) e do recém-lançado Meu corpo ainda quente (2020), romances que também são poesia e manifesto. Mantém o blog sheylasmanioto.com
Outros episódios:
1º episódio: O reencontro
3º episódio: Um labirinto dentro do carro
4º episódio: Cartas depositadas na água
5º episódio: Querida Culpa
6º episódio: Fim
Revisão: Agnes Sofia Cruz