Os olhos veem que o fogo cozinha, mas não o veem comer” | Peixe fora d’água com banzo, por Elizandra Souza, Ep. 2

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readFeb 3, 2021

--

Ilustração: Carol Itzá

Rosa morava sozinha em um desses bairros onde o metrô ainda não chegou e o asfalto ainda é só promessa, mas a casa foi a sua maior conquista, mesmo que ainda faltassem muitas prestações.

Com seus 29 anos, prometia-se que seria bem-sucedida na profissão de sua escolha. Era uma jovem da cor da noite, recém-formada em história, sua segunda graduação. A primeira fora em jornalismo, que terminou quando tinha 24 anos.

O sol ainda bocejava. No ponto de ônibus, fez sinal para que o motorista parasse. Teve dificuldade para chegar até a catraca, mas como só iria descer próximo do ponto final se ajeitou por ali mesmo. Colocou o fone de ouvido, mas não conseguia se concentrar na música, pois toda hora era esbarrada por alguém, tinha que ficar de olho no vestido, para não ser rasgado por alguns apressadinhos.

Quando desceu do ônibus, depois de uma hora e meia, a chuva atrevida ficou na frente do sol e ainda trouxe o vento como companheiro. Sempre assim, era colocar um vestido e uma sandália e o tempo mudava. O pior é que iria ficar o dia inteiro na rua, por sorte, levou um blazer.

Depois de um longo dia, passou na casa de sua mãe. A saudade dos abraços e do tempero foi mais forte do que o frio. No portão, embriagada por um perfume saboroso de comida gostosa, misturado com cheiro-verde, poderia reconhecer esse aroma em qualquer lugar que tivesse. É camarão com certeza, pensou.

— Boa noite, minha flor de mandacaru!

— Oi, minha pretinha. Dá um abraço. Saudades. Assim você mata sua mãe. Que perfume gostoso…Hummm! Onde foi toda vestida de sol?

— Entrevistei um sociólogo pela manhã. Estava quente na hora que saí de casa, foi só entrar no ônibus que deu revertério no tempo, acho que ele é meio sistemático.

As duas riram.

— Cadê painho?

— Está deitado. Vai lá falar com ele.

— Já vou. Comprei as passagens pra ir à Bahia.

Fim de mais um ciclo, o ano estava se despedindo.

— Mas vai sozinha, filha?

— Qual o problema?

— Você que sabe.

— Vou dar um beijo no pai.

— A benção, painho?

— Deus lhe abençoe. Pensei que tivesse esquecido do seu nego veio.

— Ando tão ocupada, mas vou arrumar um tempinho para ficar em família. Prometo. Está tomando direitinho os remédios?

— Na medida do possível, mas é tanto comprimido que às vezes esqueço de alguns.

— Pai, vou viajar pra nossa terra no início do ano.

— Não quer levar seu velho, não?

— Dessa vez estou sem dinheiro, mas na próxima vamos todos juntos.

— Vem jantar. Está na mesa.

Dona Riva tinha preparado camarão, couve com bacon, feijão-de-corda, arroz branco e suco de acerola.

— Que saudades dessa mavarilha!

— Você gostou, filha? Fiz com amor e carinho.

— Obrigada. Adorei.

— Viajo daqui a duas semanas. Não vou levar muitas coisas, presentes apenas para alguns parentes. E nem invente de mandar encomendas, pois vou de avião e eles cobram se tiver excesso de bagagem.

Rosa resolveu dormir na casa dos pais, ficou conversando até tarde com a sua mãe.

Elizandra Souza, por Fernando Solidade

Os olhos veem que o fogo cozinha, mas não o veem comer é o segundo episódio da série “Peixe fora d’água com banzo”, da escritora Elizandra Souza. A autora é ativista cultural há 18 anos com ênfase na difusão do jornalismo cultural da Periferia e da Literatura Negra Feminina. É integrante fundadora do Sarau das Pretas desde 2016, autora dos livros de poesias Águas da Cabaça (2012) e Punga, em co-autoria Akins Kintê (2007). Além disso, foi editora do Coletivo Mjiba dos livros Águas da Cabaça (2012), Pretextos de Mulheres Negras (2013) e Terra Fértil (2014). Também atuou como editora e jornalista responsável na Agenda Cultural da Periferia na Ação Educativa (2007- 2017), participou do Festival Internacional de Poesia em Havana (Cuba), 2016, e do Congresso LASA / Nuestra América: Justice and Inclusion, em Boston (EUA), 2019.

--

--

FOLHETIM | Sesc Pompeia

Experimento literário do Sesc Pompeia convida escritores a criarem narrativas inéditas