“Quando a memória me falha, eu recorro aos meus segredos”| Peixe fora d’água com banzo, por Elizandra Souza, Ep. 3

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readFeb 10, 2021
Ilustração: Carol Itzá

No saguão do aeroporto, a família se despedia, recomendando abraços nos familiares e fazendo algumas solicitações como castanha, polvilho, doce de caju…

Rosa desembarcou em Salvador, pegou um táxi até a rodoviária e depois um ônibus até sua cidade. Como a viagem duraria cinco horas, trouxe mantimentos, seu velho bloquinho, uma pequena mala vermelha e seu celular.

Estava tensa, pois fazia treze anos que não ia para lá. Se tivesse tudo mudado, se não reconhecesse as pessoas, as ruas, sua casa, sua história…

Quanto mais os pneus rodavam, mais ela se distanciava do seu presente para visitar o seu passado, muitas fazendas, árvores, pessoas, crianças, gados…

A memória acordou, as recordações faziam aparições constantes no pensamento. Quando se aproximou da entrada da sua cidade, sentiu as batidas do seu coração aumentarem.

Reviver sua infância foi como visitar um teatro vazio, sem o espetáculo, sem as luzes, sem os personagens. As dimensões das coisas ficaram menores, até a sua rua parecia ter encolhido, virado uma maquete com diversas casinhas coloridas com uma estrada de paralelepípedo.

Ao entrar na sua antiga casa, percebeu que ela também diminuiu e se modificou. O seu castelo tinha virado casebre, sem vestígios daquela que ali estava, procurando um escrito na parede, o pé de graviola, acerola, o galinheiro à direita do quintal…Nada disso existia mais.

Ao conversar com os moradores do município, percebia o quanto sua mãe tinha sido sábia em ter mudado de cidade.

Os poucos jovens que ainda ali residiam estudavam em outras cidades vizinhas, trabalhavam nas fazendas próximas, comércios, não tinham emprego ou simplesmente estavam casados e com alguns filhos para criar, sem estruturas mínimas de educação, alimentação e saúde.

Rosa sentia uma turbulência de tristeza e de vitória, pois todos a cumprimentavam como uma vencedora, com orgulho de seu pertencimento à cidade. É como se sua vitória fosse de todos.

Percebeu que São Paulo é uma cidade sem alma, sem vínculos, um passarinho perambulando sem ninho, solidão devastadora, que endurece e enferruja os sorrisos. Apesar de imensa, de multidão, ela é um aglomerado de gente, caldeirão de culturas, sopa sem caldo.

Ela só percebeu o quanto era incompleta estando diante do seu passado, como numa estrada de sentimentos, impressões, sensações, vivências espalhadas pela rodovia. Será que deveria voltar e recolher o que deixou para trás ou deveria seguir com nova bagagem?

Para os conhecidos, ela tinha incorporado a cultura paulista, seu sotaque estava embaixo da língua. O encantamento por seus conterrâneos, suas palavras, que saudade do linguajar que São Paulo desbotou.

Por que morar na cidade da garoa ainda é um suposto “dar certo”?

Elizandra Souza, por Fernando Solidade

Quando a memória me falha, eu recorro aos meus segredos é o terceiro episódio da série “Peixe fora d’água com banzo”, da escritora Elizandra Souza. A autora é ativista cultural há 18 anos com ênfase na difusão do jornalismo cultural da Periferia e da Literatura Negra Feminina. É integrante fundadora do Sarau das Pretas desde 2016, autora dos livros de poesias Águas da Cabaça (2012) e Punga, em co-autoria Akins Kintê (2007). Além disso, foi editora do Coletivo Mjiba dos livros Águas da Cabaça (2012), Pretextos de Mulheres Negras (2013) e Terra Fértil (2014). Também atuou como editora e jornalista responsável na Agenda Cultural da Periferia na Ação Educativa (2007- 2017), participou do Festival Internacional de Poesia em Havana (Cuba), 2016, e do Congresso LASA / Nuestra América: Justice and Inclusion, em Boston (EUA), 2019.

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