“ 5ª parte” | Há de se ter caminhos emergindo, por Raquel Almeida. Ep.5

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readOct 12, 2023

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Ilustração: Kaio Ka

A anciã

Você me enxerga, mas não me conhece.

Senta, minha fia.

O Sol aquece, e eu me sento do lado da velhinha, que se apoia em um cajado. Ela tem olhos pequenos e profundos, aparência de quem não dá ousadia a ninguém, ela se senta em um tronco de árvore que parecia ter sido esculpido — e realmente foi — pela natureza, eu me sento no chão, sinto sono e achei, por um momento, que ela me deixaria dormir.

Fia, se achegue mais aqui perto, eu não vou gritar, nem tenho mais voz pra isso. Você precisa escutar com atenção o que eu vou embalar aqui nas palavras, palavra é feitiço que afaga, e pra ter efeito precisa ser bem entendida, se você ouve e não escutar, não faz sentido estar aqui, entendeu? Vem, coloca o ouvido aqui no meu colo, você vai escutar o que meus pé tem a dizer sobre os caminhos que andei pra chegar aqui, vai escutar meu útero contando das tantas moradas que já foi, das que se alojou nela e que ela mesmo devolveu pro mundo, vai escutar meu coração contando dos amores fincados e perdidos, das facetas que o amor tem mas que só o peito pode dizer de fato o que sentiu, e tudo isso você vai escutar, só não vai ouvir o que a minha cabeça quer, ela é meu segredo, morada dos desafios, ela é escudo quando quero me proteger, mas também, pode entregar minhas estratégias, já ouviu aquele ditado?

Sua cabeça é seu guia…

Parando ali no colo dela, eu ouvia os passos, os choros, os sorrisos, e sentia com ela tudo o que ela havia dito, cada partícula dela contava uma história, é confuso, mas meu corpo assimilou cada detalhe que o corpo dela me transmitiu. Ela é familiar mas eu não a conheço, mas eu enxergo e escuto tudo que exala, está nela tantas coisas que eu nem sei classificar.

Não sei por que você sofreu tanto quando chegou aqui, eu vi tudo.

Ela falou sorrindo, eu senti no tom da sua voz.

Cê lembra, quando era criança coçava os olhos quando se sentia numa situação perigosa, como quem quisesse fugir do lugar sem ter que sair de lá, lembra? Desde lá esse lugar te espera, já pensou se você viesse pequeninha, seria tanta coisa boa pra viver, a bichinha pequena que te olha dali do outro lado do rio, tá vendo? a gente teria brincado tanto. mas sua vida tinha que ser assim, e esse é o seu momento, de se ver de dentro, e cultivar aqui só o que te cabe. a culpa, fia, nunca foi uma boa companhia

Aqui sempre esteve dentro de você, assim como seu desejo de liberdade. Ah, a liberdade, ela passa por tantas fases e nunca se faz satisfeita, você já pensou que desde sempre, mulheres como você sonha em ser livre? Qual a corrente que te prende?

O mundo aprisiona, eu sei, mas já parou pra entender que muitas vezes você mesmo se enrola em todas as correntes que te cerca? Você assume a sua parcela nos muitos grilhões que te prende?

A liberdade é um estado de completude, de alma, de querência, você só está presa aqui se quiser, sua cabeça te prendeu, não foi ninguém além de você.

Eu sei criança, existe o que nos é empurrado, a condição que viemos, e que ficamos, mas imagine se a cabeça de todos nós tivesse sido aprisionada, você não chegaria até aqui.

O que eu digo é, liberte-se do que te fizeram acreditar, sua cabeça te guia, e seus pé te levam.

Você não nasceu pra ser sombra de ninguém!

Foto: Carol Freitas

Raquel Almeida é poeta, escritora, arte — educadora e produtora cultural. fundadora do Coletivo literário Elo da Corrente, grupo que atua no bairro de Pirituba, desde 2007, no movimento de literatura periférica/negra, realizando um sarau mensal e mantendo uma biblioteca comunitária no bar onde realiza o sarau. Iniciou seu trabalho artístico em 2005 cantando no grupo de rap Alerta ao Sistema e atuou na rádio comunitária urbanos FM 2006/2007. Ministra oficinas de literatura e criação poética em escolas, centros culturais entre outros espaços.

Episódio 1

Episódio 2

Episódio 3

Episódio 4

Episódio 5

Episódio 6: 19/10

Revisão: Michel Yakini e Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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