“A Zeladora” | As crianças de Beirut, por Aline Bei, Ep. 1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readOct 21, 2020

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Ilustração: Ianah Maia

sim, há um rio no nosso bairro

se pudermos chamar isto de rio. a água

é tão densa e

uniforme

que parece feita de seda azul, mas não se enganem (pisa, para demostrar) é Impenetrável

o nosso rio não aceita qualquer mergulho ou tentativa de perfuração.

mas é um rio, os biólogos analisaram as partículas, no entanto, ninguém atravessa essa maldita couraça (acende um cigarro) ninguém se banha, apesar que as pessoas gostam de se divertir por cima dele, como uma pista de patinação.

às vezes tenho vontade de (soltando a fumaça) sei lá, Testar

se o rio não é mesmo inflamável, como dizem.

imaginem isto, o nosso bairro todo em chamas, que comecem de novo!, pelo menos a gente, os animais podem se esconder em um canto qualquer. sair quando estivermos todos mortos. assim eles poderão habitar o mundo com alguma liberdade

enquanto nós estaremos

em outra galáxia (ri, debochada) por que será que é tão difícil entendemos que morrer é acabar para sempre?

contamos essas histórias de ressurreição

lá nos palanques das igrejas, nos amamos tanto!, mesmo sendo isto que somos, uns miseráveis narcisos, vagamente inteligentes, no entanto um inseto é Mais. pensem comigo, se fossemos como eles: não sobreviveríamos por mais de trinta segundos, isso porque não acreditaríamos no nosso tamanho, só na asa — caso fôssemos insetos com asas- e por essa cegueira pagaríamos com a própria vida, como deve ser.

aliás, falando em

vida (apaga o cigarro)

eu ainda não me apresentei, não é mesmo? (joga a bituca no chão)

que deselegante, me desculpem. (o chão suga

a bituca)

meu nome é C., (estende a mão para o Nada) sou a zeladora aqui de Beirut, o nosso bairro ao norte com porteiras de vidro e vacas noturnas, nossa zona de morar feliz. com a condição de que os habitantes não saiam do bairro, é claro, sair do bairro para quê? temos tudo o que precisamos aqui, veja, alguns animais que se reproduzem veementemente. uma pequena, mas bela flora ao redor. chove, faz frio, esquenta. todas as estações do ano estão aqui. os biólogos nos visitam uma vez por semana, para renovar a chave mestra. tranco todas as casas do bairro às 20h, pontualmente. destranco às 8h, aqui ninguém tem medo de mim. não pela minha aparência, eu quando jovem nunca fui um rosto de se demorar os olhos, imagine então agora. não, não por isso. as pessoas não tem medo justamente porque carrego a chave mestra e nada de mal nunca aconteceu. e as casas são ótimas, sim, todas iguais. os mercados são abastecidos por helicópteros (fica olhando

para o Céu)

(despertando) se tenho casa? naturalmente. é logo ali, na entrada de Beirut.

eu mostro, venham (passos na grama) fica ao lado das porteiras e das vacas noturnas (passos) que podem ser bem Agressivas

que cara é essa? (ri) vocês estão protegidos pela história, não tenham medo.

por que as vacas são ferozes?

ora, já experimentou não dormir por alguns anos? aposto que você ficaria bem selvagem (ri). agora falando sério, os biólogos programaram as vacas com os olhos sempre abertos, para cuidar das pessoas que tentam fugir. hoje em dia já não acontece com frequência. mas veja, sempre tem um — muito jovem ou muito velho, os dois estão na mesma fronteira do “não tenho nada a perder” — que pode tentar uma besteira ou outra, por isso as vacas não dormem nunca. uma regra aqui de Beirut: quem quebrar alguma regra, deverá pagar com a própria vida, como deve ser.

(apontando uma estrutura de tijolos) ali, ali está a minha casa.

não, não

ninguém pode entrar

além de mim.

aqui em Beirut é Proibido receber visitas, ainda que estejamos protegidos por esse texto. a casa das pessoas é um estado íntimo garantido pela lei. não deve ser invadida, muito menos por Palavras, dentro da casa deve-se fazer um silêncio absoluto. vocês deixariam pés e vozes alheias percorrerem os seus cérebros, por exemplo? bem, se deixarem

tem um nome pra isso, a Loucura. e aqui, em Beirut, somos todos sãos (ouve-se um barulho ensurdecedor) Tenho que ir, avisa a zeladora, gaguejante

que é sugada imediatamente

pela Terra.

Aline Bei, por Lorena Dini

A zeladora é o primeiro episódio da série As crianças de Beirut, da escritora Aline Bei. Ganhadora do Prêmio Toca, criado pelo escritor Marcelino Freire, escreveu em 2017 seu primeiro romance, O Peso do Pássaro Morto. Com ele, foi a vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018 na categoria Melhor Romance de Autor com Menos de 40 anos.

Outros episódios:

2º episódio: Mulher com Ruga, nº1

3º episódio: Vacas Noturnas

4º episódio: Os senhores sentem saudades dos pássaros?

5º episódio: Os novos cães

6º episódio: As crianças de Beirut

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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