“VACAS NOTURNAS” | As crianças de Beirut, por Aline Bei, Ep. 3

FOLHETIM | Sesc Pompeia
5 min readNov 4, 2020

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Ilustração: Ianah Maia

há mais de 50 anos eu quase morri e agora estou tão perto da morte novamente, sobreviver é uma rua que se ganha no caminho, ainda assim não escapamos do nosso lamentável destino, os senhores já leram édipo rei? (tira um lenço do bolso e coloca na boca. tosse.) sim, tudo isso foi há muito tempo. e depois do incidente, poucas pessoas se aproximaram de mim. (seus olhos ganham um brilho especial) ah, que noite terrível! me lembro de cada detalhe, eu vi o rosto da morte nos dentes daquela vaca (seca o suor da testa com o lenço) eu era tão jovem quando tudo aconteceu. tinha começado a sair na rua, aprendi rápido a caminhar e a receber a luz do sol. (olha para o céu. está no alpendre da própria casa) fiquei forte, sabe, e até bonito. conversei muito com as meninas que gostavam de mim, cantei músicas e recebi músicas nos ouvidos, não consegui me casar porque o que aconteceu afastou o bairro todo de mim, nem os animais me olhavam

e eu também

me aborreci com eles, aqui os animais funcionam como uma espécie de televisão. menos as vacas, é claro. estou falando desses animais ao redor do rio. não, eles são intocáveis. estão protegidos por uma lâmina invisível. sabe senhores, as pessoas aqui de Beirut precisam entender uma coisa: nós estamos presos e isso é definitivo. não há saída a não ser a morte. e essas histórias de ressureição que o padre conta lá no palanque. bem, (guarda o lenço no bolso) quem sou eu pra duvidar de uma crença? dizem até que há vida embaixo dessa terra, isso talvez, mas eu não tenho acesso. as pessoas comuns não tem acesso. e pra mim, a vida é isto aqui que os senhores estão vendo. nada mais.

quando eu era jovem, é claro que pensei que poderia mudar o rumo das coisas. disse a mim mesmo: todo o sistema tem uma falha, esses biólogos não são Deus. então eu comecei a bolar um plano. a zeladora passa para trancar as portas sempre às 20h e antes de trancar ela checa se todos estão em casa. eu tinha das oito às oito pra tentar desvendar a falha, confesso que pensei também em planos de escavação, mas a terra aqui de Beirut (tosse, leva o lenço até a boca tardiamente) não aceita invasões. parece que estamos rodeados por natureza, mas tudo aqui é falso, senhores, no fundo Beirut não passa de uma grande maquete. um cárcere com cara de bairro civilizado, que a verdade seja dita, e na rua podemos falar o que quisermos, essa é a regra. os biólogos gostam de conhecer o nosso “pensamento ficcional”. eles nos estudam, entende? nos monitoram. nos dão essa liberdade vigiada para colher informações espontâneas sobre a nossa geração.

os senhores devem estar se perguntando como estou vivo se tentei fugir.

bem, voltemos ao meu plano.

observando a fronteira, cheguei na seguinte conclusão: deve haver uma porta. talvez eu nem precisasse fazer força. poderia tentar entender como ela funcionava, se havia uma fechadura. ou se seria só empurra-la. ou pulá-la. aqui em Beirut as fronteiras são de vidro. mas elas estão aí, nos cercando, como fantasmas. eu precisava de Tempo

para desvendá-las

e então meditei sobre as vacas, depois de observá-las de longe: elas não me pareciam inteligentes, não mesmo. para completar, estavam extremamente cansadas. se arrastavam por suas obrigações selvagens e veja, eu era forte, troncudo, e ainda sou alto, então os senhores podem imaginar como era o meu físico naquele tempo.

o que fiz? bem, eu fiquei treinando

no silêncio da minha casa

as posições corporais das vacas noturnas.

minha mãe me olhava preocupada, pobrezinha, sabia que eu ia tentar uma fuga e naturalmente que nutria alguma esperança, como mãe achava que o seu filho era um tipo especial e até que ela tinha razão. toda a guerra tem o seu sobrevivente, e disso, meus caros, disso eu posso me orgulhar. alguns jovens tentavam usar a velocidade, uns velhos tentavam usar a terra, mas nenhum tentou imitar as vacas em plena luz do dia e foi isso que me salvou.

quando me senti finalmente pronto, fui de quatro até a fronteira.

confesso que a minha respiração estava ofegante, tentei acalmá-la, e então me aproximei do bando feroz: juro

por tudo o que é mais sagrado

que essas vacas não perceberam que eu era humano.

continuaram com os seus olhos vidrados e os dentes de fora, esperando Deus sabe o que. eu quis gritar de alegria, estava radiante com o meu plano dando certo. cheguei bem perto da fronteira. senti a temperatura do vidro com a bochecha e tentei encontrar um vão, uma ruptura, foi quando uma vaca infeliz e mais esperta do que as outras finalmente me notou. Mugiu, e o barulho era ensurdecedor. ela correu na minha direção, pesadamente, com aqueles olhos vidrados e

bem, eu pensei que morreria ali. no entanto, para a minha Surpresa, as outras vacas começaram a atacá-la, eram muito protetoras com o bando e realmente achavam que eu era um igual. foi quando o helicóptero pousou. um biólogo desceu da nave, mas

as vacas estavam tão atormentadas e perdidas

que começaram a atacar o biólogo achando que ele era um cidadão de Beirut.

sem pensar duas vezes, eu puxei

a perna dele e

juntos saltamos para o helicóptero que começou a subir.

da hélice

caiu um calmante em pó para dentes aflitos

e na mesma hora as vacas voltaram a pastar.

dentro da nave, o biólogo pousou seus olhos em mim. estava desconcertado com o meu ato, achei que me perguntaria alguma coisa, mas ele

não disse nada, apenas me devolveu

ensanguentado para Beirut, me deu uma segunda chance

que simplesmente não sei se foi o meu céu ou o meu inferno.

e continua…

Aline Bei, por Lorena Dini

VACAS NOTURNAS é o terceiro episódio da série As crianças de Beirut, da escritora Aline Bei. Ganhadora do Prêmio Toca, criado pelo escritor Marcelino Freire, escreveu em 2017 seu primeiro romance, O Peso do Pássaro Morto. Com ele, foi a vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018 na categoria Melhor Romance de Autor com Menos de 40 anos.

Outros episódios:

1º episódio: A Zeladora

2º episódio: Mulher de Ruga, nº1

4º episódio: Os senhores sentem saudades dos pássaros?

5º episódio: Os novos cães

6º episódio: As crianças de Beirut

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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