“OS NOVOS CÃES” | As crianças de Beirut, por Aline Bei, Ep. 5

FOLHETIM | Sesc Pompeia
5 min readNov 18, 2020

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Ilustração: Ianah Maia

(estamos na Ilha flutuante, em um grande refeitório. os biólogos se alimentam de forma compacta e vegetariana. usam óculos escuros para preservar os olhos e pedem que coloquemos os nossos, também. um deles comenta que a luz do dia é nociva ao rosto, e agora que o câncer está superado, as pessoas precisam dos olhos saudáveis por mais tempo. o mundo estava perdido. nós o salvamos, ele comenta, todos vestem o mesmo macacão azul. fazem um brinde com seus copos biodegradáveis, enquanto o biólogo chefe se aproxima de nós. usa, em toda a sua fala, um certo tom professoral) nós programamos e controlamos a vida dos que estão no bairro apenas para diminuir o impacto ambiental. se seguíssemos como estávamos, o mundo viraria uma bola de fogo, e a Terra, veja, a Terra é a única coisa que verdadeiramente importa. não a do bairro, que é sintética. e suga, vocês viram? (orgulhoso) é um mecanismo que inventamos, de limpeza e evacuação da zeladora, quando precisamos falar com ela rapidamente. em Beirut, amigos, o que é Natureza nós protegemos com Lacre. o rio por exemplo, ele é totalmente impermeabilizado para que a civilização não consiga poluir. os animais também estão protegidos pelas lâminas. o resto nós deixamos solto, para dar uma sensação de vento e liberdade. a comida nos mercados é produzida em laboratório, para que a civilização possa estar bem nutrida sem produzir muito lixo com o corpo. (o biólogo se senta em uma poltrona) o mundo não precisa do trabalho dos que estão lá embaixo, só do nosso. nós, os biólogos, somos comprovadamente os melhores cérebros da geração. os outros são apenas conservados nos bairros. quando morrem, preservamos os ossos e usamos na feitura de móveis, e até livros. também nos estudos, é preciso estudar o erro para não cometê-lo uma segunda vez.

vocês conheceram a zeladora? (balançando a cabeça) muito simpática, não é? e inteligentíssima. não tanto para ser uma bióloga, mas lá debaixo é a mais inteligente, sem dúvida. o padre também é ótimo, especialmente na parte da memória. eles são a nossa sombra quando estamos aqui, na Ilha. vigiam, mas não punem. quem pune somos nós.

na rua, as pessoas podem falar livremente. isso nos entretém (o biólogo liga uma tela flutuante. os moradores de Beirut aparecem em diversos ângulos) essa civilização lá debaixo é o mesmo que as pessoas faziam com os cães antigamente. eles tiravam a selvageria do animal, através de alimentos, brinquedos e treinos, para domesticá-lo ao seu bel prazer e ninguém tinha pena dos cães com dono, pelo contrário. pensavam que eles estavam seguros quando tinham um lar. pois nós também pensamos assim. alimentamos e cuidamos dos nossos. não podem sair, mas tem tudo à disposição. alguns se matam na fronteira, sim, mas isso também acontecia no velho mundo, nunca faltará motivo para acabar com a própria vida, tampouco faltará motivos para ficar por aqui. não podemos nos preocupar com isso agora, pelo menos não demoradamente. temos uma Natureza para Cuidar, coisa que os nossos antepassados não conseguiram fazer. mesmo os mais preocupados com as mudanças climáticas, eles não eram radicais o suficiente. mas agora que implantarmos o Sistema, a Natureza está se regenerando com velocidade. e a civilização lá debaixo tem as suas felicidades também, a maioria vive tranquilamente, sem questionar ou problematizar demais. os seres humanos tem essa vantagem, são bastante adaptáveis, salvo os parcos rebeldes que pensam que são heróis.

vocês querem falar sobre a fronteira? claro, podemos falar sobre ela. na verdade, a fronteira é uma ilusão

de ótica, não há nada ali, mas através da comida induzimos a civilização a pensar que sim, há uma barreira instransponível. (ri) as vacas também não são reais, são antigos moradores de Beirut modificados geneticamente para proteger o próprio bairro. são os nossos cães mais ferozes, digamos assim. e sabe o que descobrimos recentemente? que os seres humanos emitem um gás quando cantam ou tocam um instrumento e esse gás, além de ajudar na limpeza da atmosfera, faz com que as árvores cresçam com mais velocidade, provamos isso aqui mesmo, na Ilha, ganhamos diversos prêmios e condecorações. por isso, a música é sempre permitida, ainda que poucos tenham talento. vocês não viram nenhum tocando? pois é, poucos tem talento. mas vamos providenciar alguns instrumentos, deixaremos nos alpendres das casas, gosto especialmente da gaita, ela faz as flores durarem mais. aos poucos, implantaremos uma política de incentivo musical, é que a descoberta ainda é recente. (o biólogo chefe se levanta) vou mostrar pra vocês, venham. temos alguns discos aqui. (abre uma cabine que revela uma vitrola futurística. ele diz: “play” e um blues começa a tocar. o bonsai — ao lado da vitrola — se alegra, visivelmente) percebem? e ao vivo é ainda melhor. não podemos aniquilar a civilização, entendem? ela tem os ossos, quando morta. e a música, quando viva. nós só precisamos cuidar da selvageria deles, especialmente das crianças. o cérebro delas é indomável, cheio de cores e degraus incalculáveis. acendem ao menor contato com a memória ou até social. você prende uma criança e ela sempre encontra um jeito de escapar. dentro da cabeça, eu digo. uma criança se lambuza com um pedaço de chocolate e pensa que ela é uma escultura. depois, no segundo seguinte, já pensa que é um médico, um artista, um bombeiro. e porque acredita com tanta força e simplicidade, ela se aproxima da nossa Ciência e acaba criando saídas, ainda que sem querer. é claro que algumas crianças são aproveitáveis, inteligentíssimas, mesmo depois que crescem. (sorrindo) onde vocês acham que foi parar aquele garoto

que estava com o pai e

de repente abriu o rio?

e continua…

Aline Bei, por Lorena Dini

OS NOVOS CÃES é o quinto episódio da série As crianças de Beirut, da escritora Aline Bei. Ganhadora do Prêmio Toca, criado pelo escritor Marcelino Freire, escreveu em 2017 seu primeiro romance, O Peso do Pássaro Morto. Com ele, foi a vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018 na categoria Melhor Romance de Autor com Menos de 40 anos.

Outros episódios:

1º episódio: A Zeladora

2º episódio: Mulher de Ruga, nº1

3º episódio: Vacas Noturnas

4º episódio: Os senhores sentem saudades do pássaros?

6º episódio: As crianças de Beiruth

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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