“Mulher de Ruga nº1” | As crianças de Beirut, por Aline Bei, Ep. 2

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readOct 28, 2020

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Ilustração: Ianah Maia

minha mãe nasceu nessas terras, mas no tempo dela as coisas eram diferentes, as pessoas podiam caminhar por outros bairros e ela me dizia que mesmo com essa “vantagem” (fazia questão de usar a palavra vantagem) poucos tinham dinheiro para se locomover, então

dava no mesmo, comentava, o importante é o dia a dia da gente e ter saúde, essa coisa de fronteira — pra mim — não dói. como é que vai me fazer falta algo que eu nunca tive? não, não dói, ela dizia de olhos marejados e

contraditórios, mas

agora ela está Morta, nem imagina

o rombo que me deixou.

eu moro na virada da rua principal, perto do rio. meu nome é R. meu hábito, além de relembrar mamãe, é tomar banho um pouco antes da chegada dos biólogos. tem gente que não toma, mas eu prefiro não arrumar nenhuma confusão. quando eles chegam, passam a máquina de raio x pra ver se os nossos ossos estão fortes, cortam o nosso cabelo, examinam as crianças, dão as gotas de sol na boca delas e também limpam as escoriações.

por que as nossas crianças estão machucadas?

bem, elas passam o dia todo na cama.

não podem sair de casa, devem ficar

debaixo do próprio teto em silêncio até o décimo quinto aniversário, são as Leis.

você está vendo ali, aqueles dois caminhando? o da direita

não parece um velhinho? (ri) mas é um jovem, é que no começo de rua eles ficam assim meio desajeitados, mas logo se acostumam com a vida ao ar livre, com dezessete anos já conseguem fazer tudo sozinhos e alguns começam até a Sonhar.

essa é a fase mais perigosa, quando os jovem acham que há espaço pra o sonho aqui em Beirut.

de vez em quando, um ou outro tenta fugir do bairro e isso corta o meu coração, mal começaram a viver e a coisa termina assim, na boca de uma vaca. é por isso que eu nunca quis ter filho, eu nunca me casei. e aqui em Beirut, por enquanto, a solidão é permitida, temos essa sorte, em alguns bairros ela simplesmente não é.

por que as crianças não podem sair de casa? olha,

aqui a gente não costuma questionar as regras que nos são impostas.

mas tem uma história Sim, que contam.

minha mãe contava

também já ouvi pelos cantos

que antigamente as crianças podiam sair normalmente.

tudo mudou quando um menino cometeu um ato impossível

e aqui os atos impossíveis são terminantemente Proibidos.

os biólogos não querem heróis, entende? em Beirut, ninguém é alguém.

mas algumas pessoas querem ser, é o caso desses jovens sonhadores.

outras são

sem querer, é o caso desse menino, e no fim acho isso ainda mais Trágico.

a história que contam é a seguinte: o tal garoto estava passeando lado a lado com o pai, um homem que se acostumou com o silêncio da casa e seguia assim, mudo, mesmo quando estava andando pela rua. eles se sentaram na beira do rio, e esse silêncio do pai, ao que parece, deixava o menino muito só. seu avô não era assim tão calado. o velho lhe contava muitas histórias quando eles estavam na rua, uma vez contou de quando os homens podiam pescar alegremente no rio que não era impenetrável, era líquido, “eles faziam assim com a vara, ó”, o vô demostrava, puxando um peixe invisível. então o menino repetiu

o gesto

pra viajar no Tempo, matar a Saudade, fugir do Silêncio do pai.

foi quando, inesperadamente, uma coisa de fato atravessou o rio.

ficou se debatendo

aos pés do garoto

era um peixe?

que atravessou também a alma

tanto do pai quanto do filho

com aqueles olhos um de cada lado

que pareciam perguntar, com que direito? hein. com que direito. vocês me tiram do fundo da minha vida pra me matar?

foi quando o helicóptero pousou na frente deles.

um biólogo desceu marchando

com uma miniatura de rio nas mãos.

colocou o peixe — — cuidadosamente — — naquela água

e entregou para o outro biólogo

que entrou no helicóptero como se carregasse a própria vida.

a nave começou a subir.

uma rede

saída da hélice

capturou o menino

que começou a se debater enquanto viajava pelos céus.

o pai implorava “devolve o meu filho!”

mas os biólogos foram embora sem dizer nada e o menino nunca mais voltou.

no dia seguinte, uma nova lei foi outorgada em Beirut.

avisaram — por auto falante — que nenhuma criança estava autorizada a sair de casa até os quinze anos e o bairro inteiro chorou, especialmente aquele pai. o homem se sentia perdido, devastado, e com razão. o ato impossível cometido pelo filho foi fruto da inocência daquele menino cheio de camadas criativas no cérebro, mas não era culpa dele ter nascido assim, muito menos das outras crianças que agora ficariam presas dentro de casa até os quinze anos, um verdadeiro Horror.

o pai ficou tão perturbado

que tentou fugir de Beirut

foi o primeiro e único homem de meia idade que tentou

e foi pego

pelas vacas, mas

eu particularmente acho

que o pobre homem buscou essa morte violenta. precisava dela

para aplacar a própria consciência, não era do tipo que nutria nenhuma Ilusão.

e continua…

Mulher de Ruga nº1 é o segundo episódio da série As crianças de Beirut, da escritora Aline Bei. Ganhadora do Prêmio Toca, criado pelo escritor Marcelino Freire, escreveu em 2017 seu primeiro romance, O Peso do Pássaro Morto. Com ele, foi a vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018 na categoria Melhor Romance de Autor com Menos de 40 anos.

Outros episódios:

1º episódio: A Zeladora

3º episódio: Vacas Noturnas

4º episódio: Os senhores sentem saudades dos pássaros?

5º episódio: Novos cães

6º episódio: As crianças de Beirut

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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