“Apoteose” | A caçadora estelar e o pássaro azul, por Fábio Kabral, Ep.6

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readNov 17, 2021

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Ilustração: Rodrigo Cândido

Vamos terminar onde começamos.
Afinal, lembrei a minha vida inteira no momento em que alcei voo com a minha nave.
Lembrei-me inclusive de um artista que dizia: o espaço é um mar de eterna escuridão onde não há um sol para iluminar o caminho.
O que estou vendo diante de mim é um oceano profundo de escuridão colorida, repleto do brilho de deuses resplandecentes que nós chamamos de estrelas.

Meu nome é Iremide Odé Wunmi, sou uma caçadora estelar filha do deus Oxóssi. Minha missão era explorar a galáxia para encontrar os melhores planetas nos quais a minha comunidade poderia se assentar para criar novas civilizações.
No entanto, eu me distraí da minha sagrada missão ao sucumbir à minha arrogância de me considerar acima de tudo e todos.
Não se paga os crimes com a morte, e sim com a vida. Assim acredito. Somente viva é que eu poderia remediar aqueles a quem causei tanto mal.
Poderia, pois, afinal, eu já morri.

Alguém se surpreendeu com isso?
Morri na queda da nave. Só não me lembrava disso. Agora, lembro de tudo.
Faz todo sentido. Afinal, o que mais fiz foi desrespeitar minha comunidade. Tomei para mim o que não me pertencia, cacei o que não devia, matei muito mais do que poderia. Transgredi pelo prazer de transgredir, sem um real propósito, sem almejar algo mais.
Não se segue todas as regras cegamente, ao mesmo tempo que não se quebra todas as regras porque sim. Há de se haver um meio termo.
O meio termo que encontrei foi me tornar uma divindade.
Agora morta, entendo finalmente que meu esforço em transgredir proibições foi meu esforço em dominar a natureza e dominar a mim mesma. Sempre foi meu sonho ir para além das estrelas, ir para além das galáxias, ir para muito além de mim. Quando enxergo o mar de estrelas à minha frente, enxergo universos de possibilidades e mistérios. Enxergo um milhão de maneiras diferentes de recomeçar o que nunca terminou. Entendo trilhões de modos distintos de explorar os duzentos e cinquenta e seis caminhos sagrados que existem dentro de mim e ao redor de todo o universo.

Por meio da minha transgressão, entendo que sou capaz de sonhar tão bem a ponto de criar novas realidades.
Estou na minha nave, minha companheira Bicudinha, e meu parceiro de aventuras, o Pássaro Azul. Eles são os equipamentos que criei para auxiliar a minha jornada. Eles são eu mesma.
Ao dominar todas as partes de mim mesma, meus sentidos se expandiram para muito além. Eu me vejo voando através do espaço, disparando a mim mesma como se fosse uma flecha atravessando planetas e meteoros, partindo sempre em linha reta, sem distrações, rumo ao meu objetivo.
Quero chegar ao centro da galáxia, lar das maiores divindades.
Quero chegar ao centro de todas as duzentas e cinquenta e seis galáxias.
Quero ser uma flecha que guia as pessoas rumo aos seus objetivos.
Quero que entendam que sonhos nada mais são que objetivos a serem cumpridos.
Quando é que não estamos perdendo tempo?
Resposta: quando somos sinceros com nós mesmos.
Estou pronta para renascer como uma deusa no centro da galáxia.

Fábio Kabral (acervo pessoal)

Fábio Kabral é escritor de ficção especulativa com foco em fantasia. No momento, passa seus dias estudando, pesquisando e escrevendo seu próximo livro: um épico de fantasia centralizado na mitologia afro-brasileira dos Orixás que será publicado pela Editora Intrínseca em 2021. Seus livros já publicados são: “Ritos de passagem” (Giostri, 2014), “O Caçador Cibernético da Rua 13” (Malê, 2017) e “A Cientista Guerreira do Facão Furioso” (Malê, 2019). Considerado um dos pilares da literatura afrofuturista brasileira e criador do gênero literário Macumbapunk. Iniciado no candomblé como filho de Oxóssi e iniciante no Culto Tradicional Iorubá. No tempo livre, lê muitos gibis e joga videogame por horas e horas. Neste instante, está muito ocupado escrevendo o próximo livro.

Outros episódios:

1º episódio: Perdida

2º episódio: Minerando

3º episódio: Caçando

4º episódio: Identidade

5º episódio: Nave

Revisão: Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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