“Perdida” | A caçadora estelar e o pássaro azul, por Fábio Kabral, Ep.1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readOct 13, 2021

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Ilustração: Rodrigo Cândido

Pergunta: Quando é que não estamos perdendo tempo?
Se eu soubesse a resposta, não estaria nesta situação…
O que é isso? Onde estou? Abro os olhos, a luz me invade, está tudo claro. Um sol verde brilha no céu. Odores quentes e perfumados invadem minhas narinas na minha primeira respiração consciente. Estou deitada, acho que nalguma grama fofa. Minhas juntas doem, parecem ranger como se eu fosse feita de lata. Mas sou de carne e osso.

Sou um organismo vivo. Certo? Sou uma omorixá, ou seja, um ser humano.
Olho para as minhas mãos. Tenho pele escura, o que me aproxima dos deuses, os Orixás. Meus cabelos são azuis, então sou uma odessi, uma filha do deus Oxóssi. Sou filha de um dos poderes ancestrais do universo. Okê, meu Pai.
Ainda não sei o que está acontecendo, não sei onde estou, não estou entendendo nada, mas preciso colocar a cabeça no lugar. O ori controla tudo. Preste atenção.
Estou vestida com trajes de exploradora, de pano colorido, grosso e resistente; luvas e botas de couro vegetal bem grossas; meu crespo está amarrado dentro de um ojá de pano especial que protege o meu ori contra a investida de espíritos alienígenas. Nos punhos das minhas luvas, há um broche em cada, na forma do ofá do meu pai Odé. Sou uma aventureira da confraria dos caçadores-exploradores, é isso? Vim parar aqui porque estava explorando esta terra?
Observo então ao meu redor. Estou numa planície de capim azul, repleta de flores roxas e amarelas. Há árvores ao redor, em toda parte, com troncos grossos e arredondados, e folhas vermelhas e azuladas. Pedras irregulares cravejadas de cristais brotavam do chão de terra, enquanto animais mamíferos corpulentos, maiores que eu, de pele borrachuda e aspecto aparvalhado, voavam por ali, com suas asas de borboleta minúsculas nas costas, e me ignoravam completamente. Eu saberia dizer nome e sobrenome de todos esses seres e coisas se meu equipamento de análise estivesse funcionando.
Hein? Equipamento? Do que você está falando?
― Você está falando de mim, mestra.
Se eu não fosse uma exploradora treinada, teria soltado um grito. Treinada por quem e pra quê? Respondo isso depois, quando me lembrar. Primeiro, preciso lidar com essa criaturinha que consiste em um grande olho suspenso por um tendão e que está se estendendo para olhar bem para mim.
― Perdoe o susto, mestra ― disse a criatura transmitindo as palavras diretamente na minha mente ― Vossas funções memoriais estão comprometidas, senhora. Infelizmente, eu também estou danificado. Sou seu equipamento, mestra.
Então percebo pela primeira vez que o corpo da criatura está atado às minhas costas, como se fosse uma mochila. Bom, era a minha mochila, meu equipamento de exploração. Uma placa de aço orgânico revestia meu torso; era minha armadura, e também parte da criatura.
O que significa tudo isso?
― Significa que a senhora está na missão de chegar onde moram os deuses ― respondeu a criatura nos meus pensamentos ― Chegar ao centro da galáxia.
― O quê? ― foi tudo o que consegui dizer.

Fábio Kabral (acervo pessoal)

Fábio Kabral é escritor de ficção especulativa com foco em fantasia. No momento, passa seus dias estudando, pesquisando e escrevendo seu próximo livro: um épico de fantasia centralizado na mitologia afro-brasileira dos Orixás que será publicado pela Editora Intrínseca em 2021. Seus livros já publicados são: “Ritos de passagem” (Giostri, 2014), “O Caçador Cibernético da Rua 13” (Malê, 2017) e “A Cientista Guerreira do Facão Furioso” (Malê, 2019). Considerado um dos pilares da literatura afrofuturista brasileira e criador do gênero literário Macumbapunk. Iniciado no candomblé como filho de Oxóssi e iniciante no Culto Tradicional Iorubá. No tempo livre, lê muitos gibis e joga videogame por horas e horas. Neste instante, está muito ocupado escrevendo o próximo livro.

Outros episódios:

2º episódio: Minerando

3º episódio: Caçando

4º episódio: Identidade

5º episódio: Nave

6º episódio: Apoteose

Revisão: Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

Experimento literário do Sesc Pompeia convida escritores a criarem narrativas inéditas