“Caçando” | A caçadora estelar e o pássaro azul, por Fábio Kabral, Ep.3

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readOct 27, 2021

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Ilustração: Rodrigo Cândido

consegui respirar quando a fera finalmente havia caído morta no chão.
Teoricamente, eu sou uma caçadora, mas não gosto de matar animais. Não me causa nenhum prazer. Mesmo criaturas monstruosas como esta.
Era um ser corpulento, semelhante a um lagarto bípede, só que imenso, duas vezes maior que eu, com espinhos farpados brotando das costas, uma bocarra repleta de dentes e uma cabeça que mais parecia pertencer a um inseto descomunal. A carcaça do bicho jazia morta aos meus pés, vitimada por uma única perfuração provocada pela minha arma. Seu sangue verde se espalhava pela terra.
― Parabéns, mestra ― disse o Pássaro Azul por cima do meu ombro.
― Parabéns pelo quê? ― retruquei. ― Por assassinar um animal faminto em seu habitat natural?
― Parabéns por sobreviver ― respondeu ele.

Lá atrás, enquanto passava horas minerando para coletar recursos, o Pássaro Azul mencionou aquilo que chamou de quatro pilares fundamentais desta nossa jornada juntos: Explorar. Negociar. Lutar. Sobreviver.
Fico pensando em quais mais significados amargos essa viagem irá nos trazer.
Enquanto eu ainda me recuperava do confronto com a criatura, Azul sugeriu que eu consertasse o visor de análise para que pudéssemos coletar dados. Na verdade, eu só precisava ordenar, ou melhor, autorizar que Azul fizesse o seu trabalho, já que ele fazia tudo sozinho e eu apenas escolhia como administrar os recursos que coletávamos. Dei a ordem, e o Pássaro Azul consertou o equipamento que fazia parte de si próprio.

― Mestra, receio que precisaremos de mais material orgânico para realizar o conserto da nave ― disse Azul.
― Você está querendo dizer que vou ter de matar mais animais para coletar pedaços de carne e vísceras, é isso?
― Precisamente, mestra.
― Nem achamos a nave ainda, como você sabe…?
― Estou realizando os cálculos com base nos arquivos de suas memórias.
As memórias que ele consegue acessar, mas eu não. Ótimo.
― Eu… não quero matar mais bicho algum. Especialmente bichos indefesos…
― Não se preocupe, mestra ― disse Azul com sua voz monocórdia. ― Este planeta paradisíaco está repleto de predadores famintos que irão nos atacar à primeira vista, tal qual a ave de rapina que está descendo para nos bicar neste exato instante…

No instinto, saltei para o lado e evitei o pior. Uma ave gigante com bico maior ainda simplesmente veio descendo com tudo e perfurou a terra firme onde eu estava como se fosse algodão. Atrás de mim, um quadrúpede repleto de tentáculos avançou tentando me abocanhar, ao mesmo tempo que um aracnídeo pavoroso tentou me chicotear com sua tromba de elefante.

No reflexo, me desviei de todos e os matei um a um. Com um único tiro de laser concentrado da minha arma. Meu Pai Oxóssi…
― Com isso, já temos os materiais orgânicos suficientes para o conserto da nave ― disse Azul com sua voz apática. ― Vamos buscar a nave.
Fico pensando se existe alguma alma no Pássaro Azul, o equipamento vivo que me guia. Fico me perguntando se, na verdade, a desalmada é o meu verdadeiro eu do qual eu não me lembro.

Fábio Kabral (acervo pessoal)

Fábio Kabral é escritor de ficção especulativa com foco em fantasia. No momento, passa seus dias estudando, pesquisando e escrevendo seu próximo livro: um épico de fantasia centralizado na mitologia afro-brasileira dos Orixás que será publicado pela Editora Intrínseca em 2021. Seus livros já publicados são: “Ritos de passagem” (Giostri, 2014), “O Caçador Cibernético da Rua 13” (Malê, 2017) e “A Cientista Guerreira do Facão Furioso” (Malê, 2019). Considerado um dos pilares da literatura afrofuturista brasileira e criador do gênero literário Macumbapunk. Iniciado no candomblé como filho de Oxóssi e iniciante no Culto Tradicional Iorubá. No tempo livre, lê muitos gibis e joga videogame por horas e horas. Neste instante, está muito ocupado escrevendo o próximo livro.

Outros episódios:

1º episódio: Perdida

2º episódio: Minerando

4º episódio: Identidade

5º episódio: Nave

6º episódio: Apoteose

Revisão: Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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