“Fractal” | Mutantes, por Daniel Galera, Ep. 5

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readJun 30, 2021
Ilustração: Pedro Franz

Estavam num vale aos pés dos Andes, isso Justine era capaz de adivinhar. Mas nenhum deles saberia dizer se era mais acima ou mais abaixo no continente, em que ponto das antigas fronteiras que delimitavam nações extintas. A criança-planta escreveu no seu bloquinho, usando como tinta a seiva avermelhada de um ramo: “Alguma coisa parece errada”.

Ela se referia ao pequeno prédio de cimento instalado numa plataforma sobre o charco, um grão de civilização entre os maciços desumanos das montanhas. Olhando de longe, não havia movimento. A única outra presença era a ausência de Clarice. As vespas foram investigar, mas voltaram e, aglomeradas na forma do menino, balançaram a cabeça. Nenhum sinal de gente.

“Mas o fractal está lá”, disse Justine.

“Sim”, escreveu a criança-planta. Ela já parecia se comunicar com as vespas por telepatia, ou qualquer processo análogo. (O segredo, caso se interessem, está nos elétrons.)

Lobos e castores espiavam dos matos e riachos. A plataforma era firme. Uma engenharia custosa que parecia coisa dos antigos donos do mundo. Mas era o fim da jornada, eles não tinham mais como retornar. Morreriam de frio e fome.

Justine só pensava que, seja lá o que os aguardava, era o único caminho para que talvez voltasse a encontrar a filha. Ela forçou a maçaneta da única porta. Nada. Mas em seguida um estalido antecedeu a abertura de uma fresta.

No centro da construção cúbica, o organismo fractal se expandia numa revolução constante para dentro de si mesmo. Suas bordas com o exterior eram incontáveis réplicas do todo, atualizando-se com a potência fluida de uma cascata. Sua linguagem era a própria forma. E os três entenderam o que ele disse: “Cuidado. Corram”.

As vespas foram envolvidas numa tela eletrocutada e caíram no piso formando uma massa baratinada. A criança-planta foi laçada do alto por algum mecanismo até então oculto. Justine fechou os olhos. Uma voz falou perto da dela: “Não tenha medo. Venha comigo”.

Nunca descobriria exatamente quem eram. Pelas roupas imaculadas e sem adornos, pela constituição pálida, pelos olhos aguados cheios de falsa sabedoria, Justine presumiu que eram políticos, tecnólogos e seus mercenários, a casta que havia surrupiado quase toda a riqueza econômica quando havia moedas e dívidas.

Eram cativos, mas foram bem tratados. Comeram, receberam roupa e acomodações adequadas a suas variadas morfologias. Havia outros mutantes em outros aposentos, revelou uma psicóloga que vinha conversar todo dia. “Queremos entender quem vocês são”, ela disse. “Não”, rebateu Justine. “Querem entender o que temos de potencial a ser explorado”.

Muitos dias passaram, talvez semanas, quando Justine teve autorização para visitar os outros. A planta escreveu no chão da cela, fora do alcance das câmeras de monitoração: “Posso sintetizar uma toxina que matará a todos”. E tratou de apagar a mensagem rapidamente com suas folhas. Justine não entendeu se eles próprios também seriam vítimas.

De volta à sua cela, mandou chamar a psicóloga.

Daniel Galera | Crédito: Suhrkamp Verlag

Fractal é o quinto episódio da série “Mutantes”, do escritor Daniel Galera. O autor nasceu em São Paulo e vive em Porto Alegre. Escritor e tradutor, publicou os romances “Meia-noite e vinte” (2016), “Barba ensopada de sangue” (2012, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura”) e “Mãos de Cavalo” (2006), entre outros livros. Escreve ensaios sobre literatura, vídeo games e cultura. “O deus das avencas”, uma coleção de novelas, será publicado em junho pela Companhia das Letras.

Outros episódios:

1º episódio: Vidraça

2º episódio: Enxame

3º episódio: Placenta

4º episódio: Rapto

6º episódio: Clarice

Revisão: Cláudio Leite

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