“Rapto” | Mutantes, por Daniel Galera, Ep. 4

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readJun 23, 2021

--

Ilustração: Pedro Franz

Venho evitando intervir na história. Escolho fatos para ter onde pisar e acrescento detalhes que, espero, ajudem a imaginação a se ramificar. Mas quero fazer dois comentários… Primeiro: tudo é fractal. Sempre. Se não aparenta, é necessário ajustar o eixo da observação ou simplesmente tomar distância.

Segundo: a diferença e a novidade que se vê na sucessão das criaturas resultam em grande parte de um ruído. Ruído na transcrição de genes, no pipocar dos embriões. Ruído na memória e na transmissão da cultura. Um ruído aleatório no mais absoluto sentido, sem leis nem desígnio superior. Pronto, está dito. Me retiro.

A cria se expandiu na grande bola de cristal da barriga de Justine. Truco dizia que parecia uma criatura abissal num aquário. Verificavam que era menina e que já desconfiava, com mergulhos e esgares inquietos, da conveniência aconchegante daquela prisão. A luz que atravessava a pele materna a incomodava. Expunham a pequenina somente ao fio de claridade das horas mágicas.

O menino-vespa e a criança-planta vieram assistir ao parto. Truco ficou firme ao lado de Justine, cortou o cordão depois de assistir às revoluções sanguinolentas dentro do corpo da mãe. As vespas tatearam a criança delicadamente enquanto mamava. A menina, que chamaram de Clarice, não tinha a pele translúcida. “Ela é normal”, disse Truco. Justine o odiou.

Precisavam seguir caminho. O plano era encontrar mais mutantes, para que pudessem proteger uns aos outros e estabelecer uma comunidade. As vespas sumiam e retornavam; os enxames se aglomeravam na forma do menino, que lhes apontava com o braço a direção do próximo a ser encontrado, aquele ser misterioso que os biólogos pelo caminho tinham chamado de organismo fractal.

Rumo ao Sul do continente, os dias foram ficando mais amenos e nublados. A bateria solar do Fiat esgotava às vezes, forçando acampamento. Truco ia sozinho buscar comida nos vilarejos enquanto os outros se mantinham em segredo.

Tinham surgido montanhas ao longe, cristas pelas quais a neve escorreu para não voltar. Clarice já acompanhava as coisas com os olhos. Certa manhã, após dormirem à noite dentro do carro, Justine deu um grito antes mesmo de abrir os olhos. Tinha a filha ao peito momentos antes, lhe parecia, e de repente um vazio horripilante se impôs. O calor, os barulhos, a pele dela contra a sua, tudo havia sido subtraído sem que ela percebesse. Truco tinha levado a bebê embora.

Depois que o pânico cedeu, Justine entendeu como aquilo havia se anunciado nos incrementos imperceptíveis da frieza do biólogo, do rapaz que a havia acolhido, que ela tinha amado. As vespas esquadrinharam quilômetros em torno, mas nada encontraram. A criança-planta consolava Justine. Deitavam juntas no solo úmido por horas a fio.

Tinham ficado com o carro, pelo menos. E assim que o sol firmou no céu e carregou as baterias, seguiram em direção às montanhas negras, guiados pelo dedo do enxame.

Daniel Galera | Crédito: Suhrkamp Verlag

Rapto é o quarto episódio da série “Mutantes”, do escritor Daniel Galera. O autor nasceu em São Paulo e vive em Porto Alegre. Escritor e tradutor, publicou os romances “Meia-noite e vinte” (2016), “Barba ensopada de sangue” (2012, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura”) e “Mãos de Cavalo” (2006), entre outros livros. Escreve ensaios sobre literatura, vídeo games e cultura. “O deus das avencas”, uma coleção de novelas, será publicado em junho pela Companhia das Letras.

Outros episódios:

1º episódio: Vidraça

2º episódio: Enxame

3º episódio: Placenta

5º episódio: Fractal

6º episódio: Clarice

Revisão: Cláudio Leite

--

--

FOLHETIM | Sesc Pompeia

Experimento literário do Sesc Pompeia convida escritores a criarem narrativas inéditas