“Placenta” | Mutantes, por Daniel Galera, Ep. 3

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readJun 16, 2021

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Ilustração: Pedro Franz

Os demônios, os milagres, as perversões genéticas. Muitos estavam atrás deles, havia recompensas e pura maldade. Mas também havia quem os admirasse e protegesse. Alguns povos indígenas, e gente simples que via neles a novidade tão esperada em meio à doença e às extinções.

Foram acolhidos por outros biólogos jovens como Truco, que formavam um culto todo à parte. Alguns nessa rede traziam relatos de outros mutantes. Uma criança-planta e um organismo fractal que desafiava descrição. Ambos ao sul, aparições no corredor árido que avançava até o pampa.

As últimas baterias de lítio de Justine e as últimas pedras preciosas de Truco foram trocadas por um velho Fiat adaptado com painéis solares. Eles desceram pelo miolo do continente a trinta e cinco quilômetros por hora, de povoado em povoado, evitando as megalópoles muradas. As vespas viajavam espalhadas perto do carro em pequenos enxames, sumiam e voltavam, batedoras de um território também em mutação.

Semanas depois, quando encontraram a criança-planta aos pés de uma cachoeira, numa ilha de Mata Atlântica em algum lugar do antigo estado do Espírito Santo, Justine e Truco perceberam que as vespas os haviam guiado até lá desde o princípio. Ela tinha a pele verde de clorofila e flores como as da bromélia, carminadas e com cálices profundos, crescendo nos ombros e antebraços.

Joaninhas e mosquitos moravam nela. Não falava, mas para a surpresa dos outros, escrevia. Às vezes farejava o ar de um jeito maníaco, como um cachorro ressabiado, e os outros não entendiam, mas eu sabia: captava as moléculas que eram as palavras das outras plantas.

Seguiram os quatro, no Fiat, rumo ao Sul.

Truco e Justine se sentiam os pais adotivos das outras duas. E depois de meses contornando como podiam a vontade de se tocar, cederam a tudo de uma vez. Quem sabe porque a jornada já parecesse sem rumo. Tinham fome, não eram exceção à miséria em torno. Achavam que podiam morrer muito em breve.

Justine espalhava o sêmen no corpo e sorria ao vê-lo ser absorvido. Truco podia se ver dentro dela com maior ou menor clareza, dependendo da posição em que se encaixavam e da transparência da pele de Justine, que variava. Seus órgãos em fricção eram visíveis dentro da teia quente de sangue e nervos, o pequeno útero encolhido acima, mas também intestinos, obscuros vasos comunicantes. O desejo tinha um pouco de horror. Se olhavam como se mal acreditassem que aquilo existisse, que estivesse acontecendo com eles.

Nos meses seguintes, viram o útero crescer e perder opacidade, até que pudessem espiar, dentro dela, o feto e a placenta. Justine enjoava, vomitava o que não comia. O fascínio de Truco foi virando medo. Se refugiava no horizonte, perdia a paciência com Justine. Enquanto isso as duas crianças, vespa e planta, passavam tempo juntas e pareciam tramar algo.

O carro alcançou as planícies. Entre montanhas de esqueletos de gado e colunas de fumaça, seguiram devagar, por estradas retas e vazias que pareciam não ter fim.

Daniel Galera | Crédito: Suhrkamp Verlag

Placenta é o terceiro episódio da série “Mutantes”, do escritor Daniel Galera. O autor nasceu em São Paulo e vive em Porto Alegre. Escritor e tradutor, publicou os romances “Meia-noite e vinte” (2016), “Barba ensopada de sangue” (2012, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura”) e “Mãos de Cavalo” (2006), entre outros livros. Escreve ensaios sobre literatura, vídeo games e cultura. “O deus das avencas”, uma coleção de novelas, será publicado em junho pela Companhia das Letras.

Outros episódios:

1º episódio: Vidraça

2º episódio: Enxame

4º episódio: Rapto

5º episódio: Fractal

6º episódio: Clarice

Revisão: Cláudio Leite

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