“As crianças de Beirut” | As crianças de Beirut, por Aline Bei, Ep. 6

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readNov 25, 2020

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Ilustração: Ianah Maia

(um morador de Beirut nos entrega um livro. “página doze em diante”, ele diz

e se Afasta.

abrimos

na Página

há uma carta

na folha do livro

toda escrita com um material denso, talvez carvão)

caros visitantes,

temos, entre tantos Abismos, esse de

não poder

proferir

palavra

quando estamos dentro de casa. às vezes, confesso que elas quase nos escapam,

mas temos de pegá-las

no ar, voltá-las à boca, se não quisermos morrer.

no entanto, ninguém nos impede de

escrevê-las, pelo menos não até agora. aproveitemos o Vácuo, sou Y., e cá estou

tentando armar

uma Revolução: Ensino

a minha filha B.

a escrever.

tudo em silêncio, dentro da folha, nos comunicamos pelas letras mudas.

ela aprenderia mais tarde, com o pó do conhecimento, mas é melhor que aprenda antes, com o pai. e quando ela sair na rua, estará mais preparada para pensarmos a revolução. porque há, em Todos Nós (até na zeladora e também no padre) um desejo crescente de mudança e justiça. os biólogos acham que não somos capazes de aprender com a leitura, por isso permitem os livros. eles subestimam a nossa inteligência, superestimam a deles, eis o primeiro erro, e talvez o mais fatal.

mas voltemos à palavra escrita. em alguns anos, minha filha sairá dessa cama pensando criticamente o sistema. a nossa salvação está entre os jovens, não é à toa que os aprisionaram, sabem o risco que correm. sempre escrevo para a minha filha: os que nos controlam são tão humanos quanto nós. se sentimos medo, eles sentem também. é por isso que acredito que descobriremos um meio de nos libertar. podemos demorar a vida inteira, podemos de fato envelhecer tentando. mas eu prefiro isso do que viver sem nenhuma causa e o melhor: não haverá mortes, nós só agiremos quando tivermos certeza. será um único ato para mudar a vida dos cidadãos de Beirut, quiçá do mundo, sabe-se lá quantos bairros existem depois da fronteira.

há noites em que acredito que talvez seja melhor deixar tudo como está, é claro que sim. mas quando eu olho para a minha filha — aprendendo a pensar através da escrita- percebo o quanto o sistema está equivocado. nos prender aqui não é solucionar as questões ambientais. isso não passa de um tormento de almas, não ensina nada, e se um dia conseguirmos nos libertar seremos ainda mais poluentes do que antes, porque estaremos com raiva e as pessoas com raiva são máquinas de destruir o mundo. precisamos transformar a nossa relação com a natureza através do conhecimento. é uma mudança muito mais lenta, sem dúvida. porém sólida. qualquer ato brusco é falho, um barulho momentâneo, e o que queremos é fazer história.

vocês podem estar me achando um louco. não me ofendo com tal adjetivo. tenho vontade sim, de transformar o mundo. e acredito que — por um lado os biólogos tem razão. a coisa, como estava, nos liquidaria em poucos anos. matávamos os recursos e pensávamos que sobreviveríamos para além deles. a natureza é muito maior do que nós, nisto estou de completo acordo. mas não se resolve uma violência com outra. e os seres humanos não são todos maus. muitos de nossos antepassados fizeram um bom trabalho na área em que atuaram, precisamos provar para os biólogos que não somos só agressividade e desamparo, somos potência e justiça, nós também somos a natureza. nos manter em cativeiro, nos reproduzindo para ver se eles encontram mais algum biólogo ou fazem uma bela mesa de jantar com os nossos ossos, entenda, isso também destrói o equilíbrio ambiental. aqui no bairro, há inteligência e inquietação, sim senhor. sou poeta, anarquista, revolucionário. e o que vocês vão fazer, me matar porque eu não concordo? pois há de não se concordar com as coisas!, é preciso ter um sistema que aceite o desacordo, que discuta, que inclua, que escute, que se modele e se transforme para além das vaidades, assim como a natureza faz o tempo todo, sabiamente. no fim das contas, acho que deveríamos nos sentar na frente de uma árvore por Anos. observá-la, até aprender com o seu tempo, silêncio e poder de regeneração. jamais agir só para manter o movimento. é preciso lembrar que queremos fazer história e não só barulho, por isso necessitamos de gestos definitivos, conscientes. não tenho repostas, é claro que não. mas sei que tudo começa com um Desejo (o meu arde) e não sou o único, sinto que não sou o único, e ainda seremos muitos mais.

afetuosamente,

Y.

ps: queime este livro depois de ler ou

guarde, como se fosse a tua Vida.

Aline Bei, por Lorena Dini

As crianças de Beirut é o sexto episódio da série As crianças de Beirut, da escritora Aline Bei. Ganhadora do Prêmio Toca, criado pelo escritor Marcelino Freire, escreveu em 2017 seu primeiro romance, O Peso do Pássaro Morto. Com ele, foi a vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018 na categoria Melhor Romance de Autor com Menos de 40 anos.

Outros episódios:

1º episódio: A Zeladora

2º episódio: Mulher de Ruga, nº1

3º episódio: Vacas Noturnas

4º episódio: Os senhores sentem saudades do pássaros?

5º episódio: Novos Cães

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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