“Piña Colada”, por Giovana Madalosso. Ep. 1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
2 min readMay 11, 2022

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Ilustração: Pietro Soldi

Escolhi morar na beira do fim do mundo. Em uma praia onde o mar subiu a ponto de beijar com peixes mortos e garrafas plásticas os lábios da Avenida Atlântica. Às vezes me perguntam o que vim fazer aqui. Ler, penso, e quase nunca respondo, em meio às estantes que me circundam na recepção. Os livros também estão à minha frente, cobrindo os corredores da pousada e as paredes do bar, onde às vezes preparo drinques para os raros hóspedes que aparecem. Talvez fosse uma estalagem mais atrativa se estivesse na cidade, onde o ar é mais seco. Aqui a umidade lembra que livros também são seres vivos, com as páginas curvando-se como lesmas nos dias de chuva, a celulose ganhando manchas como uma velha epiderme, as lombadas lançando seus humores contra os alérgicos. A maioria dos veranistas prefere outras paragens, com paredes mortas e embalsamadas a látex e parquinhos de grama sintética, mas sempre há quem goste daqui, como esses dois que agora chegam.

Têm em torno de cinquenta anos, usam óculos e roupas elegantes. Falam que já têm uma reserva. Procuro. Dou as fichas de entrada para preencherem. Ela pergunta se é necessário. A estadia está paga, precisamos? Ninguém nunca perguntou isso. Olho para as fichas. Aquele monte de questões inúteis como profissão, motivo da viagem. Não precisa, desde que vocês deixem os dados do cartão. Esses dias uma família desapareceu antes de fazer o check-out, conto. Que bela lição para os filhos, ela diz, e abre um sorriso bonito apesar dos dentes amarelos.

Ele me entrega o cartão. Ela pede um quarto com vista. Explico que só temos quartos para a rua ou para um terreno baldio. Ofereço a chave do treze. É o que temos de melhor. Informo a hora do café da manhã. Os dois agradecem, se despedem. Puxam suas malas pelo corredor. Reparo como as bagagens são grandes. Malas de quem vem ou vai para muito longe. Depois que os dois desaparecem na curva de estantes, volto meus olhos para o balcão, guardo as fichas. Só então me pergunto por que ela não quis preencher o papel.

Giovana Madalosso | Acervo pessoal

Giovana é escritora e roteirista. Autora do volume de contos A teta racional, finalista do Prêmio Biblioteca Nacional, do romance Tudo pode ser roubado, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, de Suíte Tóquio, finalista do Jabuti, traduzido para diversos idiomas, e do infantil Altos e Baixos.

Outros episódios:

2º episódio

3º episódio

4º episódio

5º episódio

6º episódio: 15/6

Revisão: Simone Lima

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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