“Piña Colada”, por Giovana Madalosso. Ep. 4

FOLHETIM | Sesc Pompeia
4 min readJun 1, 2022

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Ilustração: Pietro Soldi

Ela está falante, soltinha. Já deve ter bebido um pouco na praia ou onde quer que estivessem. Preparo seus drinques. Sinto que ela me observa. Não demora para que pergunte: você é daqui? Suspendo o movimento que faria com a coqueteleira. Não, da capital. Ela inclina o corpo para frente: mas gosta de praia. Não muito. Ela segue me olhando. Eu era secretária, vim pra ler sem ninguém me aporrinhando, digo, com esperança de que ela também conte qual é a sua profissão. Ela não diz nada, mas ele mata a minha curiosidade. Ela é escritora, fala com orgulho. E você?, ouso indagá-lo, consciente de que não é isso que se ensina na escola de hotelaria. Sou dono de uma empresa de inteligência em filas de espera. Devo parecer intrigada, porque ele explica: por incrível que pareça existe uma inteligência por trás daqueles pequenos pedestais. E sorrindo: uma inteligência bem mediana, mas existe. Acho que também esboço um sorriso, depois sigo preparando os drinques.

Sirvo. Ela toma um gole: e o que você gosta de ler? Cito alguns escritores, enfio Amalia Bautista no meio. Ela se impressiona, não é qualquer um que conhece a espanhola. Os dois falam de suas preferências literárias. Ele se revela um cara interessante, quilômetros além dos guichês que administra. Ou que diz administrar. Assim que o assunto e a bebida acabam, ele vira para ela: vamos?, e pede a conta. Entrego-lhe a nota. Quando ele já está de pé, ela diz: vai indo que vou tomar a saideira. Ele por um segundo, olha para ela. Eu baixo o rosto, arrumo as garrafinhas de bitter sobre o balcão. Tá bem, diz, e depois desaparece pela serpente de estantes.

Ela se debruça sobre o balcão: mais uma piña. E com aquele sorriso: posso te pagar uma? Detesto beber sozinha. Isso também não é recomendado no manual de hotelaria, mas dane-se o manual de hotelaria, eu aceito. E já que o manual jaz picado e incinerado, puxo a garrafa de rum e pergunto: o que você escreve? Ela hesita um pouco: livros de reportagem. Eu lembro da gaveta. Até onde sei, a única arma de um jornalista é a caneta. Talvez o revólver seja dele, penso, e só de pensar nisso erro a medida do leite de coco.

Refaço o drinque mas ela nem repara. Sirvo a nova piña para ela e para mim. Ainda não sei o seu nome, diz, e morde a cereja com uma fome estrangeira ao estômago. Pergunto o dela. Pode me chamar de Tetê. De Teresa? Ela balança a cabeça sem muita convicção. Depois põe o caroço no cantinho do guardanapo e fala que não se fazem mais cerejas como antigamente. Desde a lei seca nos Estados Unidos, deixaram de embebê-las no licor. O mundo sempre pagando pelo conservadorismo americano, suspira, e me explica a fórmula que um californiano inventou para deixá-las rosa e inofensivas daquele jeito. Pergunto sobre o que são suas reportagens: comidas e bebidas? Se for isso vou entrar debaixo do balcão de vergonha. E preocupação. Às vezes aparecem críticos de guias de viagem e avaliam a pousada, nem sempre com boas notas. Ela dá risada, diz para eu relaxar. Não escreve sobre isso. Vou perguntar sobre o que escreve, mas ela atravessa na frente, me perguntando se os avaliadores costumam se revelar como tal. Conto uma história que aconteceu logo que entrei na pousada. Rimos da avaliação constrangedora, de como dei sumiço no guia para a dona da pousada não ver. Me sinto bem. Não sei se pelo efeito do álcool, por estar perto dela ou por conversar com alguém sem a casca. Ela dá o último gole e pede a despesa, precisa ir. Falo que é por conta da casa. Amanhã a gente se vê?, ela pergunta, e some pelas estantes.

Giovana Madalosso | Acervo pessoal

Giovana é escritora e roteirista. Autora do volume de contos A teta racional, finalista do Prêmio Biblioteca Nacional, do romance Tudo pode ser roubado, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, de Suíte Tóquio, finalista do Jabuti, traduzido para diversos idiomas, e do infantil Altos e Baixos.

Outros episódios:

1º episódio

2º episódio

3º episódio

5º episódio

6º episódio: 15/6

Revisão: Simone Lima

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

Experimento literário do Sesc Pompeia convida escritores a criarem narrativas inéditas