“Piña Colada”, por Giovana Madalosso. Ep. 3

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readMay 25, 2022

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Ilustração: Pietro Soldi

Não sei o que está acontecendo. Penso nela a noite toda, acordo me perguntando se já saíram. Tenho algumas horas livres pela manhã, mas não aproveito direito. Encomendo hortelã, abacaxi, leite de coco e outros que estão faltando. Quando meu turno começa, fito a colmeia de madeira: a chave do treze não está ali. Atendo uma ligação. Leio um pouco. E então sinto o cheiro. Lá vem ela com sua aura veranil de nicotina, os cabelos desgrenhados, as sandálias estalando no chão. Me entrega a chave. Pergunta se tem algum lugar bacana pra almoçar nas redondezas. Indico dois. Ela diz um “até mais tarde” diferente. Não aquele jogado por cima do ombro, como o de todos os hóspedes, mas um que espera resposta. Até, digo com o máximo de convicção que se pode pôr nessas três letras.

Alguns minutos depois, a camareira aparece para pegar as chaves dos quartos que precisam ser limpos. São apenas dois, bem próximos um do outro. Dou um tempo e vou até lá. A porta do treze está aberta. Vejo a Rosângela limpando o banheiro. Será que entro? Pensar na lentidão do atendimento dos restaurantes da região me encoraja, mas não elimina a tensão que aperta o meu estômago. Minto para a camareira que vou checar um problema na luz. Me aproximo de uma das mesinhas de cabeceira, onde vejo um par de brincos e alguns livros. Me agacho, acendo e apago o abajur, passo os olhos pelas lombadas: Bacia Amazônica, Milton Hatoum, Amalia Bautista. Quando estou me levantando, percebo a gaveta levemente aberta, um problema que me incomoda há anos, em diversas suítes: as corrediças laterais deslizam quando há algo pesado dentro. Não sei porque toco a gaveta, talvez para fechá-la, talvez espiar algo que se insinua e, que ao ser melhor visualizado, me estarrece: o cano de um revólver. Tão pequeno que cogito ser de brinquedo. Não é possível, penso e fecho a gaveta. Será que a camareira viu isso? Não quero nem perguntar, não saberia como lidar com a resposta.

Saio do quarto. Tenho a sensação de que só volto a respirar quando chego na recepção. Assim que recobro o fôlego, procuro pela reserva, pelo nome completo dele. Dou um google. Formado em engenharia. Pianista diletante. Duas fotos com homens de gravata. Nenhuma foto com ela. Será uma assassina procurada pela polícia, por isso não quis preencher a ficha de entrada? Ou serão dois assaltantes, uma dupla de Bonnie e Clyde de meia-idade improvisando a previdência? Dou risada do que penso, embora a situação não tenha muita graça. Levanto, ando de um lado para o outro. Ao olhar para o bar, lembro do que ela disse sobre sua raiva. Está planejando se vingar de alguém? Minhas perguntas não me respondem nada. A Bacia Amazônica e o Milton Hatoum não me respondem nada. Resolvo ver quem é Amalia Bautista, me perco em seus poemas. A noite já está quase caindo quando sou interrompida por crianças cheias de areia. E, logo depois, por eles. Ela está descalça, segurando na mão as cordas das sandálias. Os dois param na recepção. Com a polidez de sempre, ele pergunta se posso abrir o bar. E ela, me olhando daquele jeito: tô doida pra tomar a pior piña colada do Atlântico.

Giovana Madalosso | Acervo pessoal

Giovana é escritora e roteirista. Autora do volume de contos A teta racional, finalista do Prêmio Biblioteca Nacional, do romance Tudo pode ser roubado, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, de Suíte Tóquio, finalista do Jabuti, traduzido para diversos idiomas, e do infantil Altos e Baixos.

Outros episódios:

1º episódio

2º episódio

4º episódio

5º episódio

6º episódio: 15/6

Revisão: Simone Lima

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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