“Piña Colada”, por Giovana Madalosso. Ep. 2

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readMay 18, 2022

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Ilustração: Pietro Soldi

Logo depois ele aparece de calção e óculos escuros, com um jornal debaixo do braço. Espero que ela vá surgir em seguida, mas não, ele sai sozinho. Sigo fazendo minhas tarefas. Concluo o check-out da suíte quatro. Assim que o hóspede vai embora, subo até lá. Gosto de ver os objetos que às vezes ficam para trás. Encontro uma lata de cerveja vazia, um blister de remédio, um livro sobre o lençol amarfanhado. Uma pousada cheia de livros atrai leitores. Talvez fosse esse o objetivo do fundador da Moby Dick. Sua viúva me contou que ele tinha duas paixões: o mar e as letras. Quem sabe precisasse de interlocutores, já que ela não é das mais cultas, nem das mais marítimas: depois da morte, deu-me o cargo de gerente, o quarto que era deles e mudou-se para a capital. Sei um pouco sobre ele por sua biblioteca, pelas células que compõem seu falecido tecido intelectual. Da mesma forma que sei um pouco sobre os hóspedes observando o que leem. O Livro Tibetano dos Mortos. Será que era dele ou nosso?, me pergunto, e logo vejo que era dele, seu nome escrito com caneta na primeira página. Talvez tenha esquecido, talvez deixado para outros hóspedes. Guardo para colocar à vista.

Ao sair da suíte quatro, pego o caminho mais longo até a recepção, passando pela treze. Detenho-me por alguns segundos diante da porta fechada. Sinto cheiro de cigarro. Escuto um barulho sutil e constante, que parece de teclas, se é que teclas podem ser digitadas com tamanha rapidez. Depois, sigo em frente. Resolvo alguns problemas, libero a camareira. Às seis, vou até a cozinha e janto rapidinho. Quando volto para a recepção, encontro, sobre o balcão, a chave do treze.

Acendo as luzes da pousada, retomo minha leitura. Perto das nove, escuto uma risada. São eles. Talvez bêbados. Ou pelo menos querendo ficar bêbados. Ela me dá boa noite e aponta para a porta envidraçada que separa o bar da recepção. Pergunta se alguém pode atendê-los. Os dois vêm atrás de mim. Sentam-se nas banquetas, pegam o cardápio. Finalmente posso observá-la melhor. Tem uma profusão de cachos pintados de ruivo, alguns centímetros de raiz branca aparecendo, um desleixo que me agrada. Ele é bonito. Maxilar largo, cabelos pretos. Ela tira um maço de cigarros da bolsa. Será que posso? Olho para o bar que vive às moscas, por que não? Ela agradece, acende. O que vai no Mojito a la Hemingway?, indaga, soltando a fumaça. O mesmo que em qualquer outro mojito, dei esse nome porque era o drinque favorito dele. Percebo que ela me olha com interesse. Pergunta se sou a dona da pousada. Falo que não. Se fosse, teríamos um barman de verdade, quem sabe hortelã para fazer aquele drinque. Não temos. Ela pede uma piña colada. Ele, um gim tônica. Falo que esses posso fazer, embora tema pela saúde dela: o abacaxi e o leite de coco venceram há tempos. Capricho no rum para disfarçar. Sirvo. Ela dá um gole e diz sorrindo: você não é mesmo barman. Também dou risada, trocamos um olhar bom. Ele comenta com ela sobre a previsão do tempo. Os dois discutem se vai dar praia, criticam os serviços de meteorologia. De repente, o celular dela apita. Ela pega, lê algo na tela. São eles de novo, diz. Você tá com medo?, ele pergunta, colocando a mão no seu joelho. Um pouco, mas a raiva ainda é maior, ela diz, e guarda o celular. Os dois terminam os drinques em silêncio. Depois ele assina a conta. Levantam-se. Antes de sumir pela porta, ela olha para mim.

Giovana Madalosso | Acervo pessoal

Giovana é escritora e roteirista. Autora do volume de contos A teta racional, finalista do Prêmio Biblioteca Nacional, do romance Tudo pode ser roubado, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, de Suíte Tóquio, finalista do Jabuti, traduzido para diversos idiomas, e do infantil Altos e Baixos.

Outros episódios:

1º episódio

3º episódio

4º episódio

5º episódio

6º episódio: 15/6

Revisão: Simone Lima

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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