Sangue é coisa de mulher, por Jarid Arraes, Ep. 4

FOLHETIM | Sesc Pompeia
5 min readAug 4, 2021

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Ilustração: Monique Malcher

65.

“Padim Ciço, me ajude

O que vou fazer agora

O senhor sabe melhor

Desse mundo todo afora

O que faço com Enedina

Como salvo essa menina

Me acuda nessa hora!”

66.

Foi primeiro que pensou

No compadre João Pereira

Em mandar José pra longe

Como a opção certeira

Tinha até já mencionado

Com João foi conversado

E sentiu-se milagreira.

67.

Disse que o marido fosse

Já chamar o Seu João

Tinha feito a sua escolha

E tomado a decisão

Ia ser melhor assim

Para dar então um fim

Sem causar destruição.

68.

O marido sem saber

Do que estava acontecendo

Animou-se já pensando

Em José se promovendo

Trabalhando com vontade

Mais pra perto da cidade

E a família só crescendo.

69.

José foi com o compadre

Pra morar bem afastado

Mas não foi muito feliz

Parecia incomodado

Não queria trabalhar

Não queria labutar

Nem virar um pau mandado.

70.

No entanto, a sua ausência

Pra menina fez um bem

Que em dias bem ligeiros

Já estava um novo alguém

Ajudava a mãe com gosto

Sem jamais se ter suposto

Que ela entendia também.

71.

Na cabeça de Enedina

Existia uma questão

Sobre ser agora moça

Sobre os atos do irmão

Era isso que existia?

E ela se conformaria

Sem poder ter opção?

72.

E a mãe, como vivia

Desde o dia que sangrou?

Quem havia lhe ensinado?

Ou também se conformou?

Muitas dúvidas dançavam

E até mesmo provocavam

Pelo pouco que escutou.

73.

Uma vez chegou na mãe

Perguntando sem rodeio:

“É só a mulher que sofre

Com o sangue e o aperreio?”

Mas a mãe ficou calada

Pensativa e até chocada

Sem saber dar um volteio.

74.

Enedina que insistia

Isso muito a incomodava

Se o pai também sangrasse

Sobre isso se falava?

Ou será que era mistério

Como um crime muito sério

Que por isso se guardava?

75.

Outra vez, sem paciência

Dona Leda apenas disse:

“Sangue é coisa de mulher

E mulher é bicho triste”

Pela casa ressoando

A resposta foi dançando

Feito coisa que existe.

76.

Foi aos poucos que Enedina

Com a mãe foi aprendendo

Que ser moça é uma vida

Toda cheia de silêncios

E a tristeza que chegar

Só se deve enfim chorar

Se ninguém estiver vendo.

77.

Mas a fome logo veio

E encheu a sua mente

Sem arroz dentro do corpo

Tudo é muito diferente

Não se faz tanta pergunta

Uma frase não se junta

Nem se olha tão pra frente.

78.

Sem a chuva para a roça

Sem o leite pras crianças

Toda a vida se transforma

Num borrão sem esperança

Se o pai não trabalhava

Até sal não se encontrava

Nem sequer numa lembrança.

79.

Foi num dia que voltava

Do açude que morria

Que Enedina até gritou

Sem crer naquilo que via:

O irmão bem na porteira

E a mãe com a cara inteira

Feito um bicho que grunhia.

80.

João Pereira estava lá

Com o braço até quebrado

O chapéu botado torto

E o cigarro pendurado

Tinha cara de desgosto

Não estava nem disposto

A qualquer desaforado.

81.

Enedina foi chegando

E de perto ela escutou:

“Seu moleque endiabrado

Tudo em casa já quebrou

Passa a noite numa farra

Bebe até soltar as garra

E o dinheiro se acabou!”

82.

“Eu não quero esse peste

Esses dias me bateu

Disse que foi sem querer

Que não viu que era eu

Mas meu braço tá partido

E ele ainda tem mentido

Do serviço que perdeu.”

83.

Dona Leda, muito braba

Gritou tanto que chorou

“Como cê faz uma dessa

E seu pai que te criou

Para ser trabalhador

Homem bom merecedor

De ir ver Nosso Senhor.”

84.

“Mas a culpa que foi minha

Eu deixei você sem rédea

Sem trabalho, sem escola

Preguiçoso pra mulesta

Só sabia era dormir

E eu nem ia sacudir

É por isso que num presta!”

85.

Enedina congelada

Na porteira se plantou

Segurava a lata d’água

Feito um ouro que encontrou

Como fosse a salvação

Para a sua perdição

Que esquecer ela sonhou.

86.

Ficou tão apavorada

Que mais nada ela entendia

As palavras que falavam

Pelo vento se escorriam

Enedina se tremendo

Com os dente té batendo

Muito mais se espremia.

87.

Foi aí que na bagunça

Dona Leda viu a filha

O seu medo estampado

E o tamanho da armadilha

Que viria por José

Todo cheio de má fé

Com maldade na braguilha

88.

“Meu cumpade, me perdoe”

Dona Leda foi falando

“O meu filho é um maldito

Eu vou mesmo concordando

Mas lhe faço outro pedido

Que não seja esse impedido

Eu já vou lhe implorando.”

89.

“Leve minha fia, então

Enedina é tão prendada

Vai cuidar da sua casa

Com comida preparada

Só precisa de estudar

Pra sua vida melhorar

Seja ela uma afilhada.”

90.

João Pereira fez a cara

De quem não possui certeza

Mas o fato é que a menina

Tinha boa a natureza

Era calma e dedicada

Muito meiga e delicada

E também tinha beleza.

91.

Como espírito sem corpo

Enedina se sentiu

Nada disso ela esperava

E nem mesmo consentiu

Mas qual era a opção?

Pra viver longe do irmão

Um caminho ali se abriu.

Jarid Arraes | Crédito: divulgação

O folhetim Sangue é coisa de mulher foi escrito por Jarid Arraes. Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado “Redemoinho em dia quente“, vencedor do APCA de Literatura na Categoria Contos, do Prêmio Biblioteca Nacional e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros “Um buraco com meu nome“, “As Lendas de Dandara” e “Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis“. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.

1º episódio: Episódio 1

2º episódio: Episódio 2

3º episódio: Episódio 3

5º episódio: Episódio 5

6 episódio: Episódio 6

7º episódio: Episódio 7

Revisão: Tatiane Ivo

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FOLHETIM | Sesc Pompeia

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