Sangue é coisa de mulher, por Jarid Arraes, Ep. 1

FOLHETIM | Sesc Pompeia
5 min readJul 14, 2021

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Ilustração: Monique Malcher

1.

Na manhã escurecida

Uma lata carregava

Com seus braços para cima

Na cintura equilibrava

Meia trouxa de lavados

Já torcidos e secados

Que no corpo se embrulhava.

2.

Tinha pano de criança

De menino pinoteiro

Camisola desbotada

Pela falta de dinheiro

Tinha calça fubazenta

De tintura tão sedenta

Do irmão que era solteiro.

3.

Enedina já conhece

Os caminhos do sertão

No seu trote agoniado

Vai mirando pelo chão

Conta pedra e rachadura

Chora causo de amargura

E sussurra palavrão.

4.

“Tô cansada dessa vida

Desses pano mal lavado

Na peleja desses dia

Sobra tudo pro meu rabo

Os irmão fica dormindo

Chega sonha se bulindo

E eu fazendo o que é mandado!”

5.

O chinelo já torado

Que com prego consertava

Só subia mais poeira

Pelo modo que arrastava

Mas ainda tinha sorte

A correia sendo forte

Na borracha se agarrava.

6.

Muito chão era passado

Sem surgir um pé de gente

Mas ao oco do sertão

Já estava indiferente

O silêncio lhe engolia

Feito tal melancolia

Que lhe era recorrente.

7.

Se parava pra pensar

Tinha pena da sua vida

Era tanto o sofrimento

Que multiplicava a lida

Sem comida, sem escola

Té doía na cachola

Que vivia ressentida.

8.

Inda mais a lata grande

Que no coco equilibrava

Com a água balançando

Para os lados chacoalhava

Não podia derramar

Pra não se desperdiçar

Todo chão que caminhava.

9.

Quando o olho avistava

O desenho da porteira

O alívio lhe invadia

E então vinha a tonteira

O cansaço enfim batia

As canela se tremia

E ela fraquejava inteira.

10.

Nesse dia ainda mais

A moleza perturbava

Pensou ser caso da fome

Que há dois dias maltratava

Com gemidos foi entrando

Para a mãe já perguntando

Se um café ainda restava.

11.

“Ô menina duma praga

Que bagunça meu juízo!

Vou falar só uma vez

E é a última que aviso:

Não tem nada pra beber

Muito menos pra comer

Só o barro aqui do piso.”

12.

“O seu pai vai acordar

A labuta é na cidade

Se um bico aparecer

Aí chega a novidade

Pelo menos o feijão

Dá alguma animação

Pra nossa dignidade.”

13.

Enedina ficou quieta

No tamburete sentou

Foi juntando mais coragem

Até que por fim falou

“E José só vai deitar

Só dormir, só descansar?”

E em seguida suspirou.

14.

A mãe que ficou calada

Quase que foi respondendo

Quando apareceu na porta

Já seguindo para dentro

O compadre João Pereira

Um trabalhador da feira

Com a boca se fedendo.

15.

A catinga do seu fumo

Dava engulho na barriga

Mas era amizade antiga

E pra não causar intriga

Todo mundo se aguentava

Quase que nem respirava

Num esforço da bixiga

16.

“Dona Leda, ô comadre

Chico já se levantou?

Ele disse desse bico

Que Gerônimo arranjou?

Vai comigo lá pra feira

Que não seja derradeira

Essa chance que chegou.”

17.

“Disse não”, ela falou

“Não sabia que era assim

Mas se tiver outra vaga

Tenta ver se dá pra mim

Também quero trabalhar

Deixo a filha pra cuidar

Dos que são pequeninim.”

18.

Enedina olhou pro teto

Foi contar telha quebrada

Quando vinha o desconforto

Se ficava amargurada

A cabeça ela espremia

Pra lembrar como fazia

A mais simples tabuada.

19.

Mas a mente se esquecia

Do que tinham lhe ensinado

Já fazia quatro anos

Do estudo abandonado

Só lembrava até o cinco

E nem mesmo com afinco

Vinha o numeral do lado.

20.

Engoliu até o choro

Sem saber como explicar

Que a fome lhe roía

E a tristeza de matar

Provocava uma mistura

Despertava uma gastura

Sem poder se controlar.

21.

João Pereira percebeu

Pelo que já quis saber

“Ô comadre, e Enedina

Tá passando pelo quê?

Essa cara de doente

Amarela de repente

Dá inté pena de ver.”

22.

“Não é nada, meu amigo

Só a fome do sertão

E também muita frescura

Muita arenga com o irmão

Fica assim de bico feito

Enedina não tem jeito

Nem vale a preocupação.”

23.

O silêncio fez presença

E então Chico apareceu

Bebeu água de um pote

E um pigarro remoeu

O chapéu ele botou

A sandália ele calçou

E “até noite” respondeu.

24.

Enedina foi pra roça

Ver se tinha novidade

Mas o chão seco de pó

Só contava uma verdade:

Não teria a plantação

Nem com reza e oração

Nem de Deus a caridade.

25.

Sem querer voltar pra casa

Numa pedra foi sentar

Quase meio acocorada

Sentindo o sol pinicar

Foi matar sua coceira

Com a unha bem certeira

Pros cambitos arranhar.

26.

Quando foi coçar a coxa

Pela saia se adentrando

Foi sentindo molhadinho

Com o dedo escorregando

E quase caiu deitada

Por ficar tão assustada

Com o sangue lhe melando.

27.

Era sangue! Sangue mesmo!

Sem questão de duvidar

Como tinha machucado

Não podia era lembrar

No terror que lhe tomou

A calçola ela abaixou

Sem poder se controlar.

28.

Enedina ali sozinha

Não sabia se chorava

Se corria ou se escondia

Ou se pela mãe gritava

Foi andando estropiada

Com a calcinha arriada

E o chinelo que puxava.

29.

“Olha, mãe, olha isso aqui

Olha o que me aconteceu!”

E o medo em sua voz

A mãe logo percebeu

Quando viu o seu estado

Ficou muda de um engasgo

Mas o caso ela entendeu.

30.

“Suba logo essa calcinha

Venha já aqui pra dentro

Era só o que faltava

Meu Padim, eu num tô crendo!

Mais problema nessa casa

Nossa vida só atrasa

Minha virgem, cê tá vendo?”

31.

“Minha fia virou moça”

Era o que ela repetia

Enedina só calada

No seu canto se aturdia

Não sabia compreender

O que queria dizer

Virar moça nesse dia.

32.

“Parta pra tomar um banho

Antes que José acorde

Cê ainda vai saber

O que é falta de sorte

Jogue fora essa calcinha

Que eu vou buscar farinha

Senão a fraqueza morde!”

33.

Era a única esperança

Para a fome que durava

Se fizesse uma semana

Na carroça se trepava

A cidade era distante

Mas a fome no semblante

Quase sempre que ajudava.

34.

Enedina ia com a mãe

Muitas horas se passavam

Três pra ir, três pra voltar

Até que por fim chegavam

Com um saco de feijão

Com farinha e macarrão

E outro pouco que doavam.

35.

Nesse dia, ficou só

Pra tomar banho na pressa

Uma sensação estranha

Feito quebra de promessa

De que algo estava errado

E o coração fechado

Quase que seu peito engessa.

Jarid Arraes | Crédito : divulgação

O folhetim Sangue é coisa de mulher foi escrito por Jarid Arraes. Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado “Redemoinho em dia quente“, vencedor do APCA de Literatura na Categoria Contos, do Prêmio Biblioteca Nacional e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros “Um buraco com meu nome“, “As Lendas de Dandara” e “Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis“. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.

2º episódio: Episódio 2

3º episódio: Episódio 3

4º episódio: Episódio 4

5º episódio: Episódio 5

6 episódio: Episódio 6

7º episódio: Episódio 7

Revisão: Tatiane Ivo

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