Sangue é coisa de mulher, por Jarid Arraes, Ep. 5

FOLHETIM | Sesc Pompeia
3 min readAug 11, 2021

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Ilustração: Monique Malcher

92.

Sem pensar mais duas vezes

Enedina fez sua trouxa

Colocou as suas roupas

Embrulhadas numa colcha

Era pouco que levava

Quase nada sustentava

Até mesmo estava frouxa.

93.

Subiu junto com João

Na carroça ali parada

Acenou pra sua mãe

Que sorria emocionada

Mas nem mesmo quis chorar

Não deu para lamentar

Tava mesmo era engasgada.

94.

Foi olhando pro caminho

Numa estrada bem vazia

Todo aquele canto seco

Provocava era uma azia

Sentiu sede de beber

E também de entender

Tudo o que lhe acontecia.

95.

Seu João foi só calado

Não tentou nem conversar

E Enedina o estranhou

Mas não quis lhe questionar

Tinha que ter gratidão

Pela sua salvação

Para um dia lhe pagar.

96.

Viajaram por dois dias

Só pararam pra dormir

Foi debaixo de uma árvore

Que Enedina quis sumir

Quis virar um pé de vento

Pra correr sem um intento

E bem livre então partir.

97.

Na realidade dura

Da carroça que pulava

Todo sonho de menina

Com temor se misturava

Com aquela sensação

De que alguma assombração

Pela perna lhe puxava.

98.

Ao chegar na nova casa

Enedina quis correr

Era ainda mais fedida

Do que imaginava ser

Com a taipa desabando

E o telhado desmanchando

Dava medo de morrer.

99.

Era a casa um só quadrado

Com apenas um colchão

No canto o fogão de lenha

E uma porta de latão

Que levava para o fundo

Um espaço sujismundo

Com buraco pelo chão.

100.

O banheiro que era ali

Sem qualquer separação

E onde iria então dormir

Se existia um só colchão?

De repente veio o medo

Junto com um cheiro azedo

De cigarro com feijão.

101.

Como se pudesse ler

O que a menina pensava

Seu João já foi falando

Tudo aquilo que achava

Que vivia na pobreza

Mas se tivesse esperteza

Logo tudo melhorava.

102.

“Seu irmão quebrou a cama

Deu fim na televisão

Só sobrou esse lixeiro

Que eu chamo de mansão

Porque perto da cidade

A maior realidade

É o custo do tostão.”

103.

“Tenho ainda muita sorte

Porque moro nesse canto

O patrão que me ajudou

Chamo inté ele de santo

Porque tenho o que comer

Dá pra mim, dá pra você

Apesar de não ser tanto.”

104.

“Quando for segunda-feira

Eu te levo na escola

Bote todos documento

Dentro aqui dessa sacola

Quando a hora se achegar

Vamo lá junto mostrar

Sem mais nenhuma demora.”

105.

Enedina concordou

E pediu grande favor

“Deixa eu ir dormir lá fora

Na carroça do senhor”

Seu João lhe permitiu

Não gostou, mas assentiu

E dormiu que até roncou.

106.

Pela madrugada adentro

Enedina só chorava

Naquela carroça dura

A costela se estralava

Foi sozinha no sereno

No vazio desse terreno

Que Enedina soluçava.

Jarid Arraes | Crédito: divulgação

O folhetim Sangue é coisa de mulher foi escrito por Jarid Arraes. Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado “Redemoinho em dia quente“, vencedor do APCA de Literatura na Categoria Contos, do Prêmio Biblioteca Nacional e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros “Um buraco com meu nome“, “As Lendas de Dandara” e “Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis“. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.

1º episódio: Episódio 1

2º episódio: Episódio 2

3º episódio: Episódio 3

4º episódio: Episódio 4

6 episódio: Episódio 6

7º episódio: Episódio 7

Revisão: Tatiane Ivo

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