Sangue é coisa de mulher, por Jarid Arraes, Ep. 1
1.
Na manhã escurecida
Uma lata carregava
Com seus braços para cima
Na cintura equilibrava
Meia trouxa de lavados
Já torcidos e secados
Que no corpo se embrulhava.
2.
Tinha pano de criança
De menino pinoteiro
Camisola desbotada
Pela falta de dinheiro
Tinha calça fubazenta
De tintura tão sedenta
Do irmão que era solteiro.
3.
Enedina já conhece
Os caminhos do sertão
No seu trote agoniado
Vai mirando pelo chão
Conta pedra e rachadura
Chora causo de amargura
E sussurra palavrão.
4.
“Tô cansada dessa vida
Desses pano mal lavado
Na peleja desses dia
Sobra tudo pro meu rabo
Os irmão fica dormindo
Chega sonha se bulindo
E eu fazendo o que é mandado!”
5.
O chinelo já torado
Que com prego consertava
Só subia mais poeira
Pelo modo que arrastava
Mas ainda tinha sorte
A correia sendo forte
Na borracha se agarrava.
6.
Muito chão era passado
Sem surgir um pé de gente
Mas ao oco do sertão
Já estava indiferente
O silêncio lhe engolia
Feito tal melancolia
Que lhe era recorrente.
7.
Se parava pra pensar
Tinha pena da sua vida
Era tanto o sofrimento
Que multiplicava a lida
Sem comida, sem escola
Té doía na cachola
Que vivia ressentida.
8.
Inda mais a lata grande
Que no coco equilibrava
Com a água balançando
Para os lados chacoalhava
Não podia derramar
Pra não se desperdiçar
Todo chão que caminhava.
9.
Quando o olho avistava
O desenho da porteira
O alívio lhe invadia
E então vinha a tonteira
O cansaço enfim batia
As canela se tremia
E ela fraquejava inteira.
10.
Nesse dia ainda mais
A moleza perturbava
Pensou ser caso da fome
Que há dois dias maltratava
Com gemidos foi entrando
Para a mãe já perguntando
Se um café ainda restava.
11.
“Ô menina duma praga
Que bagunça meu juízo!
Vou falar só uma vez
E é a última que aviso:
Não tem nada pra beber
Muito menos pra comer
Só o barro aqui do piso.”
12.
“O seu pai vai acordar
A labuta é na cidade
Se um bico aparecer
Aí chega a novidade
Pelo menos o feijão
Dá alguma animação
Pra nossa dignidade.”
13.
Enedina ficou quieta
No tamburete sentou
Foi juntando mais coragem
Até que por fim falou
“E José só vai deitar
Só dormir, só descansar?”
E em seguida suspirou.
14.
A mãe que ficou calada
Quase que foi respondendo
Quando apareceu na porta
Já seguindo para dentro
O compadre João Pereira
Um trabalhador da feira
Com a boca se fedendo.
15.
A catinga do seu fumo
Dava engulho na barriga
Mas era amizade antiga
E pra não causar intriga
Todo mundo se aguentava
Quase que nem respirava
Num esforço da bixiga
16.
“Dona Leda, ô comadre
Chico já se levantou?
Ele disse desse bico
Que Gerônimo arranjou?
Vai comigo lá pra feira
Que não seja derradeira
Essa chance que chegou.”
17.
“Disse não”, ela falou
“Não sabia que era assim
Mas se tiver outra vaga
Tenta ver se dá pra mim
Também quero trabalhar
Deixo a filha pra cuidar
Dos que são pequeninim.”
18.
Enedina olhou pro teto
Foi contar telha quebrada
Quando vinha o desconforto
Se ficava amargurada
A cabeça ela espremia
Pra lembrar como fazia
A mais simples tabuada.
19.
Mas a mente se esquecia
Do que tinham lhe ensinado
Já fazia quatro anos
Do estudo abandonado
Só lembrava até o cinco
E nem mesmo com afinco
Vinha o numeral do lado.
20.
Engoliu até o choro
Sem saber como explicar
Que a fome lhe roía
E a tristeza de matar
Provocava uma mistura
Despertava uma gastura
Sem poder se controlar.
21.
João Pereira percebeu
Pelo que já quis saber
“Ô comadre, e Enedina
Tá passando pelo quê?
Essa cara de doente
Amarela de repente
Dá inté pena de ver.”
22.
“Não é nada, meu amigo
Só a fome do sertão
E também muita frescura
Muita arenga com o irmão
Fica assim de bico feito
Enedina não tem jeito
Nem vale a preocupação.”
23.
O silêncio fez presença
E então Chico apareceu
Bebeu água de um pote
E um pigarro remoeu
O chapéu ele botou
A sandália ele calçou
E “até noite” respondeu.
24.
Enedina foi pra roça
Ver se tinha novidade
Mas o chão seco de pó
Só contava uma verdade:
Não teria a plantação
Nem com reza e oração
Nem de Deus a caridade.
25.
Sem querer voltar pra casa
Numa pedra foi sentar
Quase meio acocorada
Sentindo o sol pinicar
Foi matar sua coceira
Com a unha bem certeira
Pros cambitos arranhar.
26.
Quando foi coçar a coxa
Pela saia se adentrando
Foi sentindo molhadinho
Com o dedo escorregando
E quase caiu deitada
Por ficar tão assustada
Com o sangue lhe melando.
27.
Era sangue! Sangue mesmo!
Sem questão de duvidar
Como tinha machucado
Não podia era lembrar
No terror que lhe tomou
A calçola ela abaixou
Sem poder se controlar.
28.
Enedina ali sozinha
Não sabia se chorava
Se corria ou se escondia
Ou se pela mãe gritava
Foi andando estropiada
Com a calcinha arriada
E o chinelo que puxava.
29.
“Olha, mãe, olha isso aqui
Olha o que me aconteceu!”
E o medo em sua voz
A mãe logo percebeu
Quando viu o seu estado
Ficou muda de um engasgo
Mas o caso ela entendeu.
30.
“Suba logo essa calcinha
Venha já aqui pra dentro
Era só o que faltava
Meu Padim, eu num tô crendo!
Mais problema nessa casa
Nossa vida só atrasa
Minha virgem, cê tá vendo?”
31.
“Minha fia virou moça”
Era o que ela repetia
Enedina só calada
No seu canto se aturdia
Não sabia compreender
O que queria dizer
Virar moça nesse dia.
32.
“Parta pra tomar um banho
Antes que José acorde
Cê ainda vai saber
O que é falta de sorte
Jogue fora essa calcinha
Que eu vou buscar farinha
Senão a fraqueza morde!”
33.
Era a única esperança
Para a fome que durava
Se fizesse uma semana
Na carroça se trepava
A cidade era distante
Mas a fome no semblante
Quase sempre que ajudava.
34.
Enedina ia com a mãe
Muitas horas se passavam
Três pra ir, três pra voltar
Até que por fim chegavam
Com um saco de feijão
Com farinha e macarrão
E outro pouco que doavam.
35.
Nesse dia, ficou só
Pra tomar banho na pressa
Uma sensação estranha
Feito quebra de promessa
De que algo estava errado
E o coração fechado
Quase que seu peito engessa.
O folhetim Sangue é coisa de mulher foi escrito por Jarid Arraes. Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado “Redemoinho em dia quente“, vencedor do APCA de Literatura na Categoria Contos, do Prêmio Biblioteca Nacional e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros “Um buraco com meu nome“, “As Lendas de Dandara” e “Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis“. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.
2º episódio: Episódio 2
3º episódio: Episódio 3
4º episódio: Episódio 4
5º episódio: Episódio 5
6 episódio: Episódio 6
7º episódio: Episódio 7
Revisão: Tatiane Ivo